ESCOLA PARTIDA





Linda esta imagem dos estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), derrubando o busto do antigo Ministro da Educação, Suplicy Lacerda, que proibiu em 1964 os debates políticos entre os estudantes. Guardadas as proporções, lembra a reação popular – Stalin, Saddam Hussein – contra o autoritarismo. Só que o autoritarismo hoje é mais sutil, é montado sobre a ignorância dos povos.

A História é construída em zigue-zague, e não linearmente. Aqui neste blog já foi fartamente explicada a verdadeira intenção do impeachment, que era todos se salvarem das prisões que se aproximavam. O fim de operações tais como as da lava-jato virá aos poucos. Cercear essas operações logo no início não seria inteligente, pois despertaria o repúdio de muitos e até da imprensa internacional, deslegitimando ainda mais o novo governo. Isso virá num segundo momento, sem permitir alarde: ainda há muitos olhos voltados para o Brasil. Mas, mesmo para os mais ingênuos politicamente, inclusive para os que acreditaram estar lutando contra os corruptos, a confirmação de que o motivo da derrubada era outro pôde ser vista já dois dias depois da deposição. Sim, dois dias depois do impeachment de Dilma Rousseff por crimes de responsabilidade fiscal, o Congresso Nacional aprovou uma lei que torna o que então eram “pedaladas fiscais” em procedimento permitido. Na sexta-feira, dia 2 de setembro, os mesmos parlamentares que condenaram Dilma Rousseff pelo crime de responsabilidade fiscal aprovaram a Lei 13.332/2016, publicada no Diário Oficial da União, e as pedaladas foram flexibilizadas – é só conferir o DOU pela internet.

Em seguida, no dia 19 de setembro último, o senado tentou aprovar uma lei que anistiaria todos os envolvidos em processos relacionados com desvios de dinheiro supostamente de campanha. Por sorte da sociedade, não tiveram (ainda) sucesso. Mas já estão liberando todos os bilhões bloqueados tanto da Odebrecht quanto da OAS. E tudo isso já compunha, é provável, o pacote da tomada do poder.

Ora, para que artimanhas como essas sejam possíveis em qualquer país são necessárias algumas condições:

a) num regime de exceção: controle da imprensa e repressão às resistências.
b) num regime democrático representativo: uma imprensa conivente e um povo que não tenha sido educado para aprender a pensar por si mesmo.

É exatamente nesse contexto que chegou ao Planalto o projeto da Escola sem Partido, uma forma de garantir que os jovens sejam educados politicamente apenas pela grande imprensa.

Ocorre que os parlamentares atuais – vide a votação pelo impeachment na Câmara dos Deputados, cujas imagens tragicômicas rodaram o mundo – são parlamentares de muito baixo nível intelectual, e o projeto da Escola sem Partido era explícito demais. Burrice. Não se faz assim. Se querem que todos os carros tenham um kit de primeiros-socorros para enriquecer A ou B, é preciso alegar motivos que façam todos pensar nas vidas que poderiam ou não ser salvas. Deixe que a sociedade fique discutindo o conteúdo da caixinha de enfermagem – mais esparadrapo ou mais gaze? Tanto faz. O importante é comprarem a caixinha.

O Brasil tem hoje o que talvez seja o seu congresso mais despreparado. Durante o regime militar, em geral faltava apenas virtude aos parlamentares. Hoje também a virtude é rara, mas há o agravante de ser um congresso culturalmente grotesco. Às vezes tenho a impressão de que jamais publicaram Montesquieu em língua portuguesa. O pior é que publicaram, mas os brasileiros ainda não aprenderam a ler. Os presidentes hoje são muito mais inteligentes do que a média dos congressistas. O Planalto logo deixou de lado a tal Escola sem Partido e recuperou um antigo projeto – bom –, parado na Câmara desde 2013, que propunha a tão sonhada escola de tempo integral. Bastaria incluir no meio do projeto aquilo que ao governo interessa. Melhor do que boçalmente falar de partidos, a ideia pôde ser apresentada de forma totalmente desvinculada da intenção de despolitizar os jovens e, ao contrário, aparece como uma tentativa de melhorar a educação no país. Foi só reunir alguns números do sempre pífio desempenho da meninada brasileira no cenário mundial e justificar que a intenção é fazer o que até aqui ninguém fez (e, realmente, afora a tentativa dos CIEPs do Darcy Ribeiro, no Rio, nos anos 80, abortada pelo governador seguinte, nenhum governo fez praticamente nada pela educação).

Ter que fazer mais algumas escolas de tempo integral é um preço pequeno que o governo paga para poder redirecionar o ensino de acordo com suas conveniências. E ainda fica bem na fita. Em 1964 a intenção era a mesma, mas os militares podiam ser explícitos, e as mudanças vieram com a Lei Suplicy de Lacerda (Lei 4.464/1964), aquele da foto lá em cima, que proibia os diretórios de estudantes de discutir política (pois os jovens malvados estavam “usando os diretórios para subverter politicamente os demais estudantes”), e pelos 12 acordos firmados pelo MEC com a United States Agency for International Development (Usaid), assim como com a Lei 5.692/71 (p. 42 e 43), pacote que moldou o ensino brasileiro até a sua completa despolitização, direcionando todos os esforços educacionais para a formação técnica, de quebra melhorando a qualidade da mão-de-obra do país, uma antiga reivindicação de nosso parque industrial. Educação Moral e Cívica e Estudo de Problemas Brasileiros ensinariam o jovem brasileiro a pensar corretamente. Ou seja, não era momento de reivindicar, bastaria ser um bom técnico, um bom trabalhador (de nível médio ou mesmo superior).


Aquela reforma militar do ensino deixou-nos um país em que até profissionais com curso superior, sejam médicos, engenheiros, advogados, roubam o povo, se estão no congresso, ou batem panelas, se estão fora dele. Só aprendemos a nos odiar e a construir presídios.

Mas os que têm milhões lá fora creem ser inteligentes. Nada de violência. Se não estamos mais na ditadura, e não podemos mais tirar um presidente pela força das baionetas, usamos outros meios. Sempre legais. Quem pensa, sabe o que ocorreu, mas o grosso da população, como dizia Nietzsche, é gado, e não tem nem ideia do que está sendo feito. Para o novo governo, isso é suficiente. Não é preciso tirar sociologia, filosofia e artes do currículo, basta torná-las opcionais, como fez a ditadura, e deixar de cobrá-las nos vestibulares. Desaparecem como que por mágica, sem gritaria. De roldão – quem sabe? – história e geografia também perdem parte de sua importância. A educação física entra no bolo para que haja gritaria de todos e seja recolocada: ela legitima a reforma, pois desfaz o argumento de que era coisa direcionada politicamente.

Ninguém foi consultado, a sociedade não foi consultada. Como sempre. Porque não era mesmo para consultar. É democracia “representativa”. Vem por decreto de nossos representantes, e ficam todos, professores e alunos, discutindo o conteúdo da caixinha de primeiros-socorros.

Mais esparadrapo ou mais gaze? O que você acha?

Qual será o próximo passo? Dificultar o acesso dos jovens à internet? É só pensar num bom argumento, como excesso de tráfego, e cobrar bem caro. 

Uma ponte para o passado. Alguém tem mais alguma boa ideia?

Hoje foi dia de eleições no Brasil. E daí?

A democracia representativa nunca nos representou e nunca nos representará. Mas não desanimem, a roda da história é lenta, mas gira. Um dia votaremos tudo diretamente.
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