O JURAMENTO DOS HORÁCIOS


O juramento dos Horácios, Louis-David

 
Não se apavorem. Nada mudou. São apenas os bancos, sempre os bancos.

Hoje o Senado brasileiro aprovou a famosa PEC 55, que congela os gastos públicos pelos próximos 20 anos. É claro que foi aprovada como sendo remédio imprescindível para conduzir o país a uma gestão mais responsável. Não se pode gastar mais do que se ganha. A ideia é válida e um ajuste fiscal era realmente necessário.

O problema nosso, como sempre, está centrado na desconexão entre o sistema representativo e seus representados. Jean-Jacques Rousseau queria que o soberano, ou seja, o povo, votasse diretamente as leis e que o governante apenas executasse a chamada Vontade Geral. Aqui no Brasil, tanto o governante quanto os representantes do povo usam o poder que recebem pelo voto: ou para representar a si mesmos ou para cuidar dos interesses daqueles que os financiam. Isso é sabido, mas ainda assim nos espanta.

Na tela de Jacques-Louis David, Le Serment des Horaces (O Juramento dos Horácios), os três irmãos juram ao pai sacrificar-se até à morte pela República, ainda que isso cause a desgraça de todos os demais. No canto, ficam os desprotegidos, que sofrem sem nada entender.

É, de certo modo, também o retrato fiel de nosso momento. Nossos três representantes maiores, os presidentes Michel Temer, do País, Renan Calheiros, do Senado, e Rodrigo Maia, do Congresso, todos ao que parece também jurados para cumprir os compromissos assumidos com a República. Ou melhor, com quem talvez os tenha posto no comando da República.

Entendamos.

A operação Zelotes, deflagrada em 26 de março de 2015 para apurar fraudes fiscais de cerca de R$ 19 bilhões, avançou rapidamente e em poucos meses chegou à Bradesco Seguros (para conferir, ponham no Google: Carf, fraudes, Bradesco Seguros). Paralelamente à operação Lava Jato, outras investigações correm no país, maiores ou menores – veja-se o que ocorre por exemplo em Ribeirão Preto, em Osasco, etc. O sinal de alerta soou forte no meio financeiro: as investigações estão chegando aos bancos. Por sorte da Bradesco Seguros – sorte, apesar da tragédia, bem entendido –, justamente o presidente da empresa, Marco Antonio Rossi e seu Diretor Geral, Lúcio Flavio de Oliveira, os homens que comandavam as áreas de seguros e previdência privada do Bradesco, e pessoas da mais próxima confiança de Luiz Carlos Trabuco, o presidente do Banco, sofreram um acidente aéreo no dia 10 de novembro de 2015, ou seja, seis meses depois de iniciada a investigação. Eles estavam num jatinho que caiu numa área rural de Minas Gerais (conferir? ponham Google: Bradesco Seguros, acidente aéreo). A possível fraude de bilhões não é nada em si para bancos poderosos, o problema é que isso pode acender um pavio de complicações (im)previsíveis, com procuradores federais chegando cedo para um cafezinho nas salas da alta administração das principais instituições financeiras do país (lembremos que a operação Lava Jato tem esse nome por ter começado pela fraude apurada em um simples posto de gasolina que lavava carros... e dinheiro). Quando a Zelotes chegar no ponto – e já está quase chegando a hora de pedir os mandados de prisão preventiva – esses executivos do Bradesco não poderão mais esclarecer nada, e nem depois, se fosse o caso, fazer uma possível delação premiada. Vidas perdidas, uma certeza. Perdas para a investigação, uma possibilidade.

A partir do crescimento da Zelotes, a ideia de trocar o presidente do Brasil ganhou mais força no Congresso e na imprensa: talvez fosse a hora de aproveitar a crise econômica provocada pela queda do preço das commodities. A crise era real, acompanhem o gráfico abaixo.



Essa crise foi aprofundada pelas ações do governo Dilma, que errou ao apostar na desoneração, favorecendo as indústrias na esperança de manter o nível de consumo. Não deu certo, o rombo cresceu e deu margem ao consequente desemprego e à insatisfação popular. Bons administradores sabem que nas crises surgem as grandes oportunidades. E o momento tornou-se propício para uma mudança de cenário: sob o pretexto da crise, aos investigados bastaria convencer todos a trocar o presidente do Brasil por alguém que pudesse “estancar essa sangria”. Conseguido o primeiro objetivo, feita a troca de presidentes, tenta-se hoje diminuir a independência de procuradores e juízes, com medidas que ainda não se concretizaram somente porque houve alguma reação popular, e gritos de muitos desses juízes e procuradores ecoando aqui e ali em parte da imprensa. Mas tudo tem seu tempo.

Os compromissos do novo governo Temer já foram tratados neste blog em um post anterior (leiam Sem a música a vida seria um erro). Mas salta aos olhos também o proveito dos bancos por trás de quase todas as medidas.

Sherlock Holmes ensina a Mr. Watson que toda investigação começa por suspeitar de quem mais se beneficiou com o crime. Horácios ou Curiácios?



a) PEC 55: Já que era preciso mexer no controle de gastos, façamos de forma a beneficiar diretamente quem?
OS BANCOS, é claro: vamos congelar os gastos públicos por 20 anos, reservando todos os recursos economizados para pagamento de dívidas, e sem nenhuma contrapartida de reinvestimento. Para entender melhor: o minério de ferro da Vale do Rio Doce, que quatro anos atrás era vendido por US$ 192/ tonelada, está sendo vendido hoje por US$ 41 (confira no site  vale.com). E assim também quase todos os nossos demais itens de exportação. E tem gente que pensa que foi só o petróleo que caiu imensamente de preço. O Brasil tem matriz exportadora, e não aproveitou o período de vacas gordas para formar poupança interna, apostou apenas na expansão do consumo e na atração do capital especulativo que vinha de fora. Agora, com ou sem o teto, só vamos começar a equilibrar as contas quando o quadro externo for revertido. O pagamento dos juros não paga a dívida, só empurra, pois o principal só vai começar a ser resolvido quando a crise das commodities passar. E teto existe para os gastos, não existe teto para pagamento de juros nem serviços da dívida: estes estão livres e priorizados. A bola de neve vai continuar crescendo praticamente na mesma proporção, paguemos um pouco mais ou um pouco menos. Ou seja, vamos paralisar o país apenas – realmente apenas – para pagar juros e rolar dívidas, sem possibilitar a formação de poupança interna ou aumento de produção. Isso beneficia somente os rentistas e o setor financeiro. Em outras palavras, todo o esforço será feito apenas para não prejudicar os bancos, para engordar mais os bancos. Sempre foi assim.




b) REFORMA DA PREVIDÊNCIA
O homem está vivendo mais, as populações envelhecendo, e os jovens tendo menos filhos, ou seja, o mundo todo precisa reformar seu sistema previdenciário. Aqui, como fazer de forma que beneficie... quem?
OS BANCOS, é claro: vamos centrar a reforma da previdência não só na faixa etária, como estão pensando os europeus, mas sim na dissolução do sistema como um todo, forçando todos os possíveis beneficiários – funcionários públicos ou não – a pensar em contratar um plano privado. Você não já está pensando nisso, leitor? Os planos privados terão um enorme boom, beneficiando todo o segmento. Em outras palavras, beneficiando os bancos.



c) CONGELAMENTO DE VERBAS PARA SAÚDE E EDUCAÇÃO
Com o sucateamento ainda maior da saúde e da educação, o que será percebido em poucos anos, quem tem condições, e não o fez ainda, vai ter que pensar em planos privados de saúde e em seguros para garantir a educação dos filhos (educação que tende a ser crescentemente privatizada). Muita expansão de negócios projetada para os já existentes Bradesco Saúde, Itaú Saúde, Bradesco Seguro Educacional, etc – apenas para citar os maiores bancos.

Há sinais? Não seriam necessários, mas é fácil o leitor observá-los. Levantamento da revista CartaCapital, publicado em 9 de dezembro, mostra que, dos 70 compromissos publicados na agenda do Secretário da Previdência, Marcelo Caetano, desde que assumiu o cargo, em 21 de julho, 21 foram com representantes de bancos, fundos de pensão privados e fundos de investimento, e três com organizações patronais. O site, para conferência dia a dia, é

O governo Michel Temer entende que pode não durar muito.

Mas nem todos parecem ter percebido a pressa, a urgência, que têm os três Horácios – Temer, Renan e Maia – em aprovar logo as medidas chamadas necessárias. Pressa, muita pressa. Quase tanta quanto tem o Ministro José Serra em desfazer-se do pré-sal. Como se o Brasil a partir disso fosse realmente começar a trilhar um caminho seguro.

A preocupação do governo é com a contenção de gastos?

A presidente Dilma, a louca, foi afastada no dia 12 de maio de 2016. Ela havia pedido em março autorização ao Congresso para elevar o rombo fiscal do ano para a casa dos R$ 96 bilhões. Um absurdo, disseram muitos congressistas. No dia 20 do mesmo mês, uma semana após o afastamento, o novo governo provisório encaminhou ao Congresso a mesma proposta, mas alterou o valor. Pediu autorização para elevar o rombo de gastos para R$ 170,5 bilhões. Estavam mesmo preocupados com a contenção de gastos? E não nos esqueçamos de que dois dias depois de afastar definitivamente a presidente por ter cometido pedaladas fiscais o Congresso tornou legais as mesmas pedaladas.

Na tela de Louis David, o maior pintor da era revolucionária francesa, vemos os três Horácios jurando amor à República. Eles estão altivos, ruidosos, pegando em armas. Repito, observem no canto a triste e belíssima imagem dos que sofrem com a luta, as mulheres, os simples, os que nada podem fazer senão lamentar.

Nossos três Horácios brasileiros, em nome da República, parecem ter feito outro tipo de juramento.

Isso só vai acabar quando educarmos o nosso povo e votarmos diretamente nossas leis.


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SEM A MÚSICA A VIDA SERIA UM ERRO




O que está acontecendo, afinal?
Muito barulho e pouca música.

Quando as pessoas estão insatisfeitas e não entendem o que se passa, gritam. E gritam por socorro, desejando tambores que anunciem salvação. Ciclicamente isso tem acontecido ao longo da História. Se a orquestra desafina, parem a música, derrubem o maestro, chamem os tambores: é hora de tambores.

Macri foi eleito na Argentina, May é a nova Thatcher da Inglaterra, Trump venceu até contra a grande mídia, Hofer é o favorito na Áustria, Rajoy foi eleito na Espanha, e o segundo turno na França será disputado entre Fillon e Marine Le Pen, ambos de extrema direita. 

Ingenuidade alguém pensar que aqui no Brasil, com a derrocada do PT, seria a vez do crescimento do PSOL ou de outra agremiação alinhada com reformas sociais. Mais próximos estamos de eleger um Bolsonaro (não necessariamente ele) ou um Crivela. A História é assim. Há gente que acha que se Hitler não tivesse chegado ao poder o mundo teria tido outro rumo. Como se não estivessem no poder, no mesmo período, Mussolini, Stalin, Franco, Salazar, Perón e Vargas. A Alemanha sem Hitler seria a mesma, apenas o nome do nazista seria outro.

Mas nunca tivemos o mesmo problema na Suíça. Não porque seja um país pequeno, de exceção.
A Suíça sofreu uma guerra civil entre liberais e conservadores em 1847, guerra que foi vencida por Guillaume-Henri Dufour, um engenheiro civil militar,  defensor das ideias de Jean-Jacques Rousseau. Dufour, natural de Genebra, como o filósofo, conseguiu a pacificação do país levando os Cantões a adotar o sistema de democracia direta como forma de eliminar os políticos que sujeitavam todos a leis que contrariavam a vontade popular. Derrubar muros para construir pontes, disse ele. É o maior herói da história helvética. Ele instituiu o ensino obrigatório, e seguiu os princípios ensinados no segundo volume do Emílio, obra em que Rousseau revoluciona a educação. Inicialmente, nada de livros, diz Rousseau, na primeira infância é preciso buscar a aproximação entre as crianças e a natureza: deve-se ensinar os pequeninos a cuidar de plantas e animais (daí o jardin,  jardim de infância, não o kindergarten de Froebel, que depois deformou a ideia de Rousseau), desenvolvendo primeiro nelas, nas crianças, a sensibilidade, a solidariedade ante a dor dos outros seres vivos, para só depois dar a elas conhecimento. Sem tal formação prévia, todo conhecimento recebido pela criança pode ser usado no futuro para oprimir seus semelhantes. Veja-se que o Congresso brasileiro é composto quase todo por deputados e senadores que possuem curso superior, e nem por isso são pessoas melhores. O general Dufour era um estadista que paradoxalmente preocupava-se até com a dor dos inimigos. Foi ele quem criou a Cruz Vermelha Internacional, fruto de sua experiência na guerra em que demonstrou ser possível vencer batalhas com poucas baixas para si e também para o inimigo.

A Suíça é filha de Rousseau e de Dufour. Mas a Suíça é principalmente fruto da educação. Lá a democracia direta faz com que o país passe ao largo das crises políticas e econômicas, com baixas alíquotas de impostos, economia livre e plena liberdade individual para todos os cidadãos. Tudo decidido diretamente por eles.

Aqui no Brasil a realidade triste acompanha a crise de representatividade que assola todo o mundo ocidental, fazendo com que o povo, desnorteado, busque um salvador da pátria, um homem forte que ponha ordem na casa. Um tambor bem retumbante.

O agravante no Brasil é que essa desordem ultrapassa a crise econômica e escancara a realidade de sermos um país em que a corrupção sempre foi sistêmica, percorrendo todos os segmentos, do homem mais simples das ruas aos empresários mais prósperos, e tudo referendado por um sistema representativo purulento. Vivemos sobre um esgoto fétido, e sempre soubemos disso, mas desta vez a tampa do bueiro voou longe e não estão conseguindo recolocar.

Michel Temer aceitou alguns pactos para satisfazer sua vaidade de chegar ao poder. Sim, vaidade, apenas vaidade, porque ele não é caracterizado por assaltos ao dinheiro público. Convive com a corrupção, aceita-a nos demais, mas vai ser difícil encontrar dinheiro no seu bolso, assim como será difícil também encontrar nos bolsos do Fernando Henrique, da Dilma e mesmo do Bolsonaro. Os valores e os desvalores nem sempre são iguais. Estes quatro são capazes de fechar os olhos aos ladrões, mas na verdade os desprezam. Hitler também era assim, desprezava Göering.

Leiamos aqui os três pactos firmados tacitamente por Michel Temer, e talvez possamos entender este movimento tão polifônico quanto dissonante dessa desmúsica brasileira:

1) PACTO COM OS INVESTIGADOS:
Aos corruptos deputados e senadores, está claro que Temer prometeu inibir as operações da Polícia Federal quando estivesse no comando. Para tanto, deixaria que seguissem em frente as tentativas do Congresso de legislar no sentido de pouco a pouco retirar força do Ministério Público e das investigações. Os planos já estavam traçados antes, pelos principais investigados. Quem ainda tiver estômago, digite no Google os nomes, por exemplo, de Jucá ou de Renan, junto com a palavra “gravação”. São gravações anteriores ao processo de impeachment. As tentativas de barrar a prisão de condenados em segunda instância, anistiar caixa 2 e tornar passíveis de condenação juízes e procuradores, por abuso de autoridade, só ainda não viraram lei porque setores barulhentos de parte da imprensa e da sociedade reagiram de imediato.

2) PACTO COM OS BATEDORES DE PANELAS:
Aos conservadores inocentes, que creem estarem seus filhos sendo doutrinados politicamente por professores comunistas, e pelas redes sociais, Temer oferece uma reeducação. Para Temer – que é culto, professor de direito constitucional – a chamada “escola sem partido” é uma iniciativa boçal, que aos olhos dos intelectuais do país mostra-se claramente como censura política. Inteligente, Temer resgatou um bom projeto de reforma educacional, esquecido no congresso, que previa a escola de tempo integral -- uma antiga luta de todos os que clamam por uma verdadeira reforma do ensino. O cavalo de Tróia? É simples: deixando de ser obrigatórias, as disciplinas que dão margem a discussões políticas cairiam para segundo plano, o que atende às necessidades de despolitização mais imediatas. De quebra, a reforma poderia ser bem vista por empresários e pelos próprios jovens, pois o currículo dá mais liberdade aos alunos, além de prepará-los para um Brasil competitivo, formando trabalhadores tecnologicamente mais capacitados. 

3) PACTO COM O PSDB:
Ao partido que efetivamente representa o liberalismo clássico no país, com toques neoliberais, Temer promete cumprir a agenda do ajuste fiscal e a desregulação das amarras da legislação trabalhista e previdenciária. Ele precisou do PSDB para tirar Dilma e conta com o apoio do partido para governar no congresso. Claro que isso não é exigência dos membros corruptos do PSDB que, assim como os que são corruptos no PT, não têm nenhuma ideologia. Quem dita o perfil do PSDB são os Fernandos Henriques e Artures Virgílios, que sonham com uma pátria que se aproxime da escola de economia austríaca. Os Aécios têm poder, mas não sabem e nem se interessam por saber quem foi Mises: querem apenas dinheiro. O PSDB exige de Temer que cumpra esta agenda neoliberal,  pois o partido já se considera o próximo governo e encontraria, assim, a casa já previamente arrumada, sem necessidade de tomar as chamadas medidas impopulares.

São esses três segmentos que disputam o poder hoje no país. Acrescentem-se aí os movimentos populares que, mesmo baqueados pelo afundamento do PT, possuem nível de organização capaz de fazer crescente barulho nas ruas, agregando os partidos nanicos de esquerda e os grupos minoritários.

E todos os segmentos se odeiam ou se desprezam uns aos outros.

O espetáculo é barulhento, mas aproximando bem o ouvido podemos perceber que até se assemelha a uma peça musical. É tenso, com alternância de movimentos entre adagio, andante, allegro, e prestissimo. Pena que no Brasil poucos aprendem música na escola. Poucos entendem o tom do que está acontecendo.

E Nietzsche nos lembra, em seu Crepúsculo dos Ídolos, na máxima 33... ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum (Sem a música a vida seria um erro).

A democracia direta virá, com o tempo. Depois de fazermos uma revolução educacional que lembre, ainda que de longe, os ensinamentos de Rousseau e Dufour. Aí não precisaremos mais de representantes, que nunca nos representam nem vão representar. Tomaremos nossas próprias decisões sem crer em promessas. Pode acreditar.

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