ELA É SÓ UMA VAGABUNDA



Autorretrato (Artemisia Gentileschi)

chiaroscuro: percebemos que o corpo, o rosto e o vestido estão no visível, e a tela, a paleta de pintura e a personalidade da mulher ficam na sombra. Nesta self do século XVII, é assim que se retrata Artemisia Gentileschi, uma das principais expressões do Barroco italiano, filha artística de Caravaggio.

Com 19 anos, Artemisia foi estuprada por seu professor de desenho, Agostino Tassi, artista de prestígio em Roma. Tassi ignorou o talento e pôs o olho no corpo da mulher. Foi acusado e condenado ao exílio, mas não precisou cumprir a pena por alegar que, na ocasião, a menina já não era virgem.

Um dos quadros mais famosos de Artemisia foi Susana e os anciãos,  que retrata a passagem bíblica em que uma jovem é condenada à morte por cometer adultério. Os acusadores, dois velhos e respeitados juízes, haviam tentado seduzir a moça, motivados pela nudez em que a viram entrar no banho. Recusados, e precavidos, apelaram para a moralidade inventando o adultério.

O caso de Susana teve final feliz. Daniel conseguiu provar a calúnia, separando os acusadores e ouvindo assim versões diferentes. Artemisia não teve a mesma sorte. Agostino Tassi continuou livre e muito  prestigiado pelos homens de bem, recebendo deles generosas encomendas de pintura.

Susana e os anciãos (Artemisia)

Esses dois episódios estão separados por milênios. Mas as condutas que funcionam bem para fazer o mal se repetem, se repetem e se repetem. Justamente porque funcionam. A acusação moral é a mais inteligente forma de se conseguir apoio popular e inverter um jogo que nos seja desfavorável.

MILITARES E CIVIS

O brasileiro médio é obcecado por discurso moralista que venha de cima. Não enxerga problema estrutural. Nossos militares, presos ao passado, continuam a reproduzir a formação que receberam durante a guerra fria, e formam triste aliança com uma boa parte da classe média, uma parcela de mais reduzido entendimento, aquela que construiu sua autoestima -- desde os tempos coloniais -- na ilusão de pertencer à Casa Grande, no orgulho de ser alguém que não se confunde com os libertos ou os remanescentes da escravatura, "os pardos, sem educação e inconvenientes".  Afinal, olhar de cima para baixo os excluídos cria a confortável sensação de ser um incluído.

Gen. Heleno contra o comunismo
Moro contra a corrupção

Há interesses internos e externos que se beneficiam dessa deformação cultural. A ciranda financeira sempre favoreceu uma parcela considerável dos atores econômicos, de rentistas médios a grandes bancos e empresas. E estes não pretendem se arriscar com mudanças estruturais.

Assim, sempre que necessário e possível, ao primeiro sinal de fraqueza da coesão popular, aliam-se os interesses econômicos imediatos daqui e de fora do país, e ambos tocam a sineta de Pavlov para que aqueles militares e brasileiros médios encham o peito e gritem bem alto: abaixo a corrupção, ela é a raiz de todos os males! Garante-se aqui a manutenção da estrutura que a uns é favorável, e lá fora mantém-se o alinhamento político e económico da América para os americanos.

Herança de uma formação escravocrata? Sim. Mas não só. No centro desse tabuleiro sempre esteve o interesse internacional. Criação da Petrobrás, remessa de lucros ao exterior, crescimento dos BRICS, descobertas do Pré-Sal. Há peças mais fundamentais nesse jogo.

Foi o discurso moralista que em 54 derrubou Vargas e interrompeu as mudanças estruturais. Foi o discurso moralista que em 64 levou às ruas a marcha pela família com Deus pela liberdade e interrompeu as mudanças estruturais.  Foi o discurso moralista que exigiu as reformas desestruturais e  entregou e puniu as empresas brasileiras de ponta que incomodavam a concorrência internacional.

Lá fora, são punidos os empresários corruptos, mas nunca as empresas que são marcas da excelência do país. Ninguém é burro de dar o chamado tiro no pé.

O que ganharam os brasileiros com a desestruturação de gigantes como Petrobrás e Odebrecht? Além de ver suas empresas fora do mercado internacional, o país ainda amargou uma queda de US$ 47 bilhões de arrecadação, e perdeu 4,5 milhões de empregos diretos e indiretos.

Belo legado, um verdadeiro estupro. De brinde, uma administração que nos levou a meio milhão de mortos. Até aqui.

No Brasil, como na Roma de Artemisia, você pode estuprar e bater à vontade. Desde que depois aponte a menina como vagabunda.

A moral às vezes é bem imoral.



O NOVO NORMAL

 

Franz Hals, O flautista (Louvre)


Há um consenso: depois da pandemia, o mundo terá de conviver com novos hábitos. Máscaras, álcool gel e algum distanciamento farão para sempre parte de nosso cotidiano. O novo normal. 

E isso realmente vai acontecer. Até a chegada das vacinas, isso vai acontecer. Mas, sejamos realistas, é só até lá. Depois de vacinados todos (e a fila é longa), leva apenas um ou dois meses para até os mais desconfiados perceberem que só eles estão de máscara na rua.


Somos assim, tudo é definitivo até passar e deixar de ser.


A poesia, como a bater papo conosco, sempre nos lembrou disso. De Vinícius a Legião, o amor deve ser eterno enquanto dure e que se ame como se não houvesse amanhã. É sobre o amor, mas a arte deu o seu recado.


Franz Hals! Ninguém representou melhor a eternização do instante do que Franz Hals, pintor da era de ouro da escola holandesa, no século XVII. Seguidamente endividado, volta e meia vivia angústia terrível, até que aparecia algum nobre em seu socorro, sempre "pela última vez". Alegre, feliz, de novo com sua situação "definitivamente" resolvida, Hals voltava a pintar. Sua vida se refletia em suas obras: alguns retratos, por encomenda, eram pintados como figuras estáticas, estáveis. Já todos os demais eram flagrados em plena ação, retratados no momento, no instante eternizado. Era como ele vivia. E é como a maioria de nós vive, como ciganos. O que importa é a próxima dança. E isso é bom, é vida. Mas, em alguns casos, o preço é alto.


Franz Hals, Cigana (Louvre)


Os ciganos, quando o ambiente não é bom, mudam-se para outro lugar. Não podemos ser ciganos o tempo todo. A humanidade é apenas uma, ciganos e não ciganos. E todos só temos este planeta para habitar.


Não vemos além do momento atual.  Nosso alcance vai até ali, o tal palmo adiante do nariz, a pandemia, que é provisória. O desastre maior, definitivo e fatal, bate à porta e fingimos não ver. A cada gripe suína, aviária, Influenza tipo A, Vaca Louca, Ebola, Sars, Mers, H1N1, Zika, culpamos a causa imediata, a globalização, com seu comércio e deslocamentos, os hábitos alimentares, a China, a África, o macaco, o morcego. 


Enfim, olhamos para cada caso em particular como se fossem causas isoladas. Ignoramos as denúncias da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUD), chamamos todos de comunistas e continuamos a destruir os ecossistemas originais para atender às necessidades sempre crescentes do mercado.


Não vai ter novo normal. Basta observar as aglomerações não só no Brasil e nos Estados Unidos, mas também em governos sérios como França e Alemanha. Em todo o mundo, a paciência se esgota dia a dia. Sim, a mudança de hábitos vai acontecer, mas noutra direção: aprendemos a usar mais os recursos da era digital que já estavam aí. Foi um bom treinamento. Só isso vai mudar.


É claro que o Covid-19 vai passar e todos vão tirar as máscaras. 


Mas, sejamos lúcidos: na sequência de Sars, Zika, Mers, H1H1, e Covid vão chegar os próximos vírus e afins, e é óbvio que algum deles será ainda mais letal.


E talvez não saia com água e sabão.





O HOMEM QUE RI


A vida não é senão uma longa perda
 daqueles que amamos (Victor Hugo)

Não. 
Não sou nem a cópia da sombra do palhaço Bozo de que todos debocham. 

Sou, sim, o Homem que ri.  Aquele que traz alegria e faz rir a todos os inocentes -- sejam crianças crianças, sejam crianças adultas -- e  representa a esperança dos nada inocentes que pensam como eu. Um terço do Brasil (e do mundo), tenha certeza, pensa como eu, embora na maioria do tempo fique em silêncio. Silêncio para fora e às vezes para dentro de si.

Os outros, todos os outros, ingenuamente apontam o dedo para mim e mostram a sua revolta. A cada vez que debocho deles, assustam-se e levantam o dedo. Faço isso toda vez, e rio. E eles de novo se assustam e levantam o dedo. Como crianças. Ainda não entenderam. Acham que basta apontar e dizer MAMÃE, ELE FEZ DE NOVO!. 

Mas a mamãe, meus caros, no máximo vai virar o rosto, mecanicamente, e dizer para não fazer mais isso, que é feio. Não há Maias, Tóffolis ou militares do executivo que queiram ou possam me pôr de castigo.

Não tenho cultura, não gosto de ler, tal como o barbudo, mas tive amigos cultos nas Agulhas Negras. Mourão era duas turmas acima, Braga Neto duas turmas abaixo, mas na minha própria turma tinha muita gente que lia. O Cid, o Mauro César Cid, que chegou a general, disse uma vez para eu ler O homem que ri, de um Victor Hugo, que tinha a ver comigo. Foi o único livro de literatura que li. Por causa dele, vi os filmes daí derivados, The Man Who Laughs, de 1928, horrível, mudo e preto-e-branco, e O Coringa, de agora, que não entendi. Pouca gente sabe que o malvadão dos desenhos da DC Comics foi inspirado no personagem do Victor Hugo. Eu me reconheço nesses coringas, até nesse último. Muita ação contida sob a máscara, a persona grega, do riso. 

Rio e debocho. Os dois terços do Brasil não vão me derrubar enquanto eu for interessante para os que comandam as forças econômicas fora do governo. Ou tem algum inocente que pensa que o Collor e a Dilma caíram por elbas e pedaladas? Uma saída minha atrasaria ainda mais as reformas que estão em andamento. Vivemos um hiato acidental, o do virus, e com um "coringa" no poder fica mais fácil o país tomar a decisão de soltar o gado, se for necessário sujar a canastra real da economia. 

Não sou nazista. Vejam como esse povo é idiota. Nunca um nazista desejaria se aproximar de Israel nem trocaria beijos com Netanyahu. Perseguir os judeus foi o maior erro de Hitler, pois em todos os lugares em que os judeus se fixaram criaram prosperidade e riqueza. Não sou nazista. Mas admiro a racionalidade dos nazistas para tomar decisões, sempre pensando no bem maior. Por isso pus o imbecil do Alvim na Cultura, mas aí o cara vai imitar um tal de Goebbels e queima o meu filme. A esquerda gritou, "Nazista! Miliciano!" Ora, as milícias são uma necessidade no Rio, assim como as S.A. foram em Munique e Berlim. Já falei disso na minha primeira carta (ver Carta não escrita, post deste mesmo blog). 

Mas vamos ao que não posso dizer:

Se encerrarmos o isolamento, pessoal, será melhor para todos, talkei? Observem os números:


Como podem ver, seria a hora de aqueles que estão já saindo da vida, ou por idade, ou por morbidez, dizerem a seus netos e filhos que pode ser, sim, que seja a hora de o vovô partir.

Rosenberg, o 3° à direita do Fürer
Alfred Rosenberg era nietzscheano, e foi o filósofo do Reich. Adorava a música de um tal de Wagner, como o Goebbels e o Alvim. Foi de Rosenberg a ideia de retirar de suas casas alemães doentes ou deficientes, levando-os para hospitais onde supostamente teriam estrutura e tratamento adequado. Meses depois um telegrama chegava aos familiares dando notícia de que, apesar dos esforços, o parente não havia resistido a uma pneumonia.

Horrorizados? Claro, todos somos emocionais, quando se trata de família. Mas o estadista não pode ser. Desde "O Príncipe" não pode ser. E Rosenberg tinha que ser racional. A solução beneficiava todo mundo: 

1) o Reich, que não teria gastos com pessoas que não eram mais produtivas; 
2) a família, que se desobrigava do peso de cuidar de alguém; 
3) o próprio internado, que saía de uma vida que não fazia mais sentido. 

Quem era prejudicado? Ninguém. A eutanásia era praticada em segredo pelo Estado, deixando a família emocionalmente conformada, crendo em morte natural.

Sou contra a eugenia, mas pensem, internamente, e com sinceridade: será que vale a pena sacrificar e prejudicar o futuro de tantos jovens para salvar uns poucos velhos que ainda insistem em ser um peso na vida de suas famílias? Eu mesmo, tenho mais de 60, tusso e me exponho. Se for, fui.

Dizem que com o relaxamento podem morrer mais de 500 mil. Mas serão pessoas que já não têm o que fazer aqui. Para os 208 milhões de brasileiros a vida vai seguir normal, sem essa prisão domiciliar.


Não, não sou um Bozo. O Bozo foi um palhaço, Bob Bell, que divertiu crianças americanas por muitos anos (no Brasil foi interpretado por José Vasconcellos e mais tarde por Pipoka). Eram só palhaços.

Minha personalidade representa algo bem mais sério e complexo. Talvez um Coringa.

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ORA, BOLHAS!

Cupido com bolha de sabão, 1634
Rembrandt

Bolhas sempre existiram. Nas telas e na vida.

Rembrandt van Rijn foi um artista holandês que pintava seus quadros quase sempre por encomendas. Trabalhou no século XVII, na era de ouro dos Países Baixos (a atual Holanda e parte da Bélgica de hoje). A prosperidade econômica da pequena região refletia-se na cultura, e fez nascer aos poucos uma crescente burguesia, homens poderosos que não tinham título mas tinham dinheiro, e muita vontade de alcançar reconhecimento social. Uma das formas de aparecer bem era encomendar quadros de grandes pintores, imitando os hábitos e valores da nobreza, buscando entrar cada vez mais num círculo fechado, antes inacessível. 

Na tela acima, vemos Cupido com bolha de sabão, simbolizando um contraste entre a ilusão do amor, Cupido, que nos parece puro e cheio de vida enquanto amamos, e sua realidade, que é ser efêmero como uma bolha de sabão, que por mais linda e iridescente que seja, se desfaz em poucos segundos, explodindo sozinha ou ao contato com outra superfície.



Hoje está na moda falar de bolhas. Desde que o ativista americano Eli Pariser, de orientação progressista, publicou o livro The Filter Bubble, em 2011, o termo passou a ser utilizado no cotidiano para significar a prisão intelectual em que a maioria dos homens se encontra neste início de milênio, fruto de uma nova relação entre publicidade e consumo, mediada pela era digital. 

De fato, na internet somos hoje minuciosamente controlados por algoritmos que coletam e organizam os big data, numa espécie de inteligência artificial. Esses programas monitoram nossa localização, guardam por onde navegamos nos sites, as lojas em que entramos, o que consumimos, e até marcam o tempo que gastamos online lendo que assuntos e vendo que vídeos. Todas as nossas pesquisas, visualizações, likes e inscrições alimentam a venda de espaço publicitário direcionado e a monetização dos produtores de conteúdo.

A intenção maior atual  é que as redes sociais e a propaganda possam se antecipar aos desejos e interesses do usuário e oferecer aquilo que ele já quer, em todos os temas, sejam eles do campo comercial, político, musical, cultural ou profissional. 

Se alguém fizer uma pesquisa no Google, por exemplo, utilizando o computador de outra pessoa, vai receber respostas diferentes das que receberia se a pesquisa fosse digitada no seu próprio notebook. Teste você mesmo. Entre no Youtube pelo celular de um amigo: de cara, pelas sugestões de vídeo que ali aparecem, você vai saber o que ele gosta de ver quando está só.

São os filtros, são as chamadas bolhas.

Mas na verdade esses isolamentos em grupos afins sempre foram marca de tensão social, visível às vezes, outras vezes nem tanto. Fosse um romano antigo, ou um francês medieval, todos tinham sua cosmovisão filtrada pela classe social a que pertenciam. Ontem foi, e ainda hoje é, difícil pensar fora da bolha que nos envolve, embora a tal bolhinha pareça sempre ser muito clara e transparente.  

É raro chegar a ter consciência de que o conhecimento vai além das verdades que enxergamos e que nossa vontade aceita. Isso traz insegurança. Se acredito que a Terra é plana, ou que Maomé é o maior profeta, não quero nem ouvir quem diga o contrário. Quero argumentos que reforcem minhas convicções. A última coisa que me interessa é que abalem minhas crenças, que me deixem sem chão. A fragilidade da bolha é uma mentira. A bolha de sabão é sólida. É sólida. É sólida, sim. E pronto!

Mas há uma diferença positiva da era digital em relação ao passado. O homem de hoje não precisa encomendar quadros caros, de pintores famosos, para sair de sua bolha. Basta clicar do outro lado, tão fácil quanto levantar a cabeça. Os algoritmos são estradas muito bem construídas, mas é você quem escolhe as direções e alimenta as máquinas.


Detalhe

No quadro de Rembrandt, Cupido assopra uma bolha de sabão apoiando-a numa concha. As nossas bolhas são também assim. Resistentes. Dificilmente espocam de forma espontânea. Para rompê-las, é preciso muito esforço e alguma vontade de nossa parte.

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E DEPOIS DAS CHAMAS?


Notre Dame de Paris, 15/04/2019

Vimos a Notre Dame pegar fogo em abril, e cinco meses depois nossas florestas começaram a queimar. Lá e aqui a repercussão internacional foi grande.

Há mais de vinte anos, a Disney fez uma excelente adaptação da obra mais popular de Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame. Os direitos comerciais do desenho, desde o incêndio trágico, têm sido doados para a reconstrução da catedral, e mais de US$20 milhões chegaram a Paris. A produção rivaliza com A Bela e a Fera e com o Rei Leão entre as mais populares da história dos desenhos da era pré-digital.

Há uma diferença, porém: a Bela e o Leão realmente são boas histórias, e com conteúdo, mas foram pensadas desde o início para o público infantil, enquanto a Notre Dame de Paris (esse foi o título original do livro publicado em 1831) é um dos romances mais profundos da absurdamente excepcional literatura do século XIX. 

Ali se desenvolvem todos os dramas humanos, tanto no plano coletivo, social, quanto no individual, psicológico. Do monarca Luís XI, egoísta, ensimesmado, até descer ao corcunda Quasímodo, que chegou a amar seu próprio opressor, o arcebispo Frollo, todas as almas são lidas em seus mínimos desvios, tudo no espaço interno da Notre Dame, protagonista individual, e no parvis, que é como denominamos em francês o espaço aberto à frente das catedrais, e que no romance representa um antagonista coletivo.

A etimologia de parvis remete a paraíso, e é ironicamente o campo não elísio dos risos cruéis e sofrimentos que se apresentam todos os dias diante das gárgulas… gárgulas atentas, que parecem perceber a tragédia humana como interessante antessala do inferno.

O brasileiro deveria ler, ou reler, a Notre Dame de Paris. Ou pelo menos rever o desenho. Tudo o que estamos vivendo em 2019 está ilustrado no parvis daquele século XV: a crescente mendicância dos que só têm a rua para dormir; a indiferença dos que passeiam em seus cavalos, que se queixam de ser importunados pelos pedintes e de ter que se desviar dos trapos humanos, os sempre vagabundos que enchem as ruas

Há crescimentos que são imperceptíveis no dia-a-dia, como o de nossos cabelos ou de nossos filhos. Assim também vemos as ruas iguais dia após dia, mas pouco a pouco há mais gente dormindo nas calçadas de bairros em que isso antes não acontecia. Cresce a necessidade de fechar o vidro do carro para não ser incomodado pelos vagabundos fortes que podiam estar trabalhando, em vez de limpar vidro, vender balinha ou fazer malabarismo. Mais e mais craqueiros se escondem ou circulam sem destino… vivemos num país em que os poderosos fizeram a opção de ir aos poucos transformando populações inteiras em zumbis, e as cidades grandes em cenários vivos da série Walking Dead.


Darcy Ribeiro em 1982:
Ou fazemos escolas ou construiremos presídios

As ruas são o retrato de um país quebrado. A solução? Reformas. E como nas reformas ninguém abre mão dos privilégios, ou seja, não podemos cobrar impostos sobre lucros e dividendos (como os Estados Unidos fazem e o resto do mundo também), nem cortar o auxílio-paletó, tiramos (in) justamente de quem não tem. Genial a ideia de acabar mais ainda com o poder aquisitivo de quem consome bens de primeira necessidade. Qualquer estudante de economia do segundo ano percebe que isso vai fechar mais indústrias, pôr mais malabaristas nas ruas e fomentar a violência.


O Corcunda de Notre Dame, 1996
Não temos uma Disney para suavizar a realidade. Ainda bem que vem aí o porte de armas. Quem não puder ir para o exterior, levar seu dinheiro para Miami ou conseguir vaga numa embaixada, vai precisar dessas armas. Num primeiro momento, para se defender das ruas. Mais tarde, quem sabe, para assaltar.

E depois das chamas? As gerações que vêm aí precisam fazer deste país uma democracia direta.


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UMA CARTA NÃO ESCRITA

Caravaggio, Medusa

Por que o espanto? 

Por que muitos me chamam de burro, boçal,  grosseiro, inconveniente? Por que pedem o meu impeachment, a minha interdição? 

Esses amam a democracia, eu jamais a quis. Justamente os que se dizem democratas querem romper com o resultado das urnas. Numa democracia o poder oscila, ora para a direita, ora para a esquerda. Mas não. Para esses, não. O poder não pode oscilar, a menos que seja entre uma esquerda e outra esquerda. 

Desejam o absurdo: que a direita (que venceu) governe com as ideias da esquerda. Quem é o burro? 

Sou um homem coerentíssimo e verdadeiro. Isso assusta as pessoas que estão acostumadas a líderes políticos que não falam o que pensam, dizem só o que acham que é conveniente um estadista dizer.

Acaso eu prometi alguma coisa diferente do que estou fazendo? 

Sempre defendi a ditadura militar, e considerei a tortura um mal necessário em certos contextos. Já disse mais de uma vez que a história da luta armada foi mal contada, com foco nas vítimas de apenas um dos lados. 

Por mim, fecharia o Congresso e acabaria com o Supremo. Nunca falei nada diferente disso.

Criticam e querem denunciar  meu apoio e minhas relações com as milícias. Não entendem nada de Rio de Janeiro. Os milicianos são um Estado paralelo fundamental para o equilíbrio das comunidades de onde o poder público se ausentou.

O que penso hoje dos homossexuais, do protagonismo de mulheres na sociedade, e do vitimismo dos negros? O mesmo que pensava antes. Jamais fui hipócrita. A minha visão da família, da moral,  vem há muito tempo alinhada com a de notáveis pastores que são meus amigos, mais conservadores. Podem rir o quanto quiserem do pé da goiabeira, mas a ministra vai continuar lá. É isso mesmo. Quer mais? Eu e meus filhos admiramos e seguimos, sim, as  ideias políticas e acadêmicas do professor Olavo de Carvalho. E daí? 

Nada disso foi novidade.

Enfim: nunca menti, não enganei ninguém. Foi dessa forma que por décadas consegui eleger a mim e a minha família. E é dessa forma que continuaremos a ser eleitos quando tudo isso acabar.

Se o que digo choca muitos brasileiros, é sinal de que vai empolgar o meu eleitorado fiel. E eu não sou burro de tentar agradar a uma maioria que me despreza e decepcionar aqueles que se identificam comigo.

Doido, tosco, idiota? Se alguém está de bobo nessa história, meu caro, esteja certo: esse cara não sou eu.


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AS (CONTRA) REFORMAS


O nascimento de Venus
Sandro Botticelli
Num quadro renascentista típico, o que primeiro se vê é o tema central. O pintor é objetivo, vai direto ao assunto. Os motivos restantes distribuem-se equilibradamente de um lado a outro da tela. Tudo com claridade absoluta e nitidez de contornos. Serenidade.

A primeira visão que nos chega é a da deusa Venus, que é o tema do quadro, cercada por Zéfiro e Clori de um lado e uma das Horas, de outro. Todos bem visíveis, claros em todas as suas partes. 

Essa visão de mundo construiu-se aos poucos, a partir da fundação das primeiras universidades europeias, ainda no século XIII. Foi um progresso do lado humano da vida, que mais e mais se afastava da religião. 

As consequências foram estudadas e conhecidas: Reforma e Contrarreforma.

Filho direto dessa Contrarreforma, o Barroco trouxe abordagem bem menos objetiva, típica do momento de tensão da época.

A conversão de S.Paulo
Caravaggio
O que primeiro vemos numa pintura barroca é quase sempre um pretexto secundário, de forma que o tema seja percebido depois, num segundo olhar. Há um deslocamento do tema central. Claridade forte em alguns pontos, com  muitas sombras dispersas e partes que não conseguimos ver, uma bela técnica chamada pelos italianos de chiaroscuro. A tela nos remete à tensão, sem nitidez, sem nenhuma objetividade.

Vemos, assim, primeiro um cavalo,  um cavalo enorme, que nos agride os olhos. Depois então reparamos em Paulo,  um santo caído, quase pisoteado em sua conversão. Com luz em meio a sombras que muito sugerem, escondem, temos um chiaroscuro notável, e tudo sem nenhuma nitidez de contornos. Tensão.

Camões e as Tágides
Columbano
A literatura também exemplifica essa visão de mundo. Numa fase maneirista, ou seja, quase barroca, Camões desloca o tema central algumas vezes: aqui ele começa um soneto que parece apenas descrever uma paisagem bucólica...

A formosura destas frescas serras,
E a sombra dos verdes castanheiros
O manso caminhar destes ribeiros
Donde toda tristeza se desterra
(...)

e assim vai nos versos seguintes, para depois deslocar seu tema:

Enfim, tudo o que a rara natureza, 
Com toda a variedade nos oferece, 
Me está, se não te vejo, magoando. 

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece, 
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas maiores alegrias, maior tristeza.

                               (Camões, Rimas)

Falava de amor, não da natureza.

Pois bem. Essa pequena viagem às luzes renascentistas e à reação conservadora que se seguiu pode nos ajudar a compreender melhor os nossos dias.

Vejamos.

Vivemos tempos barrocos. Hoje há também uma certa contrarreforma, inclusive com deslocamento do tema central.

a) O que todos veem:

O Brasil está em discussão.

Guedes, Moro, banqueiros e generais discutem com os congressistas sobre as formas das reformas.

Enquanto isso, o lado bufão do governo ri, solta pum e dá cambalhotas para distrair a grande mídia e as redes sociais. A família presidencial e outros discípulos de Olavo e Steve Bennon parecem ter saído de um túnel do tempo, quase com gritos de "abaixo Fidel". E os brasileiros desse time são canastrões de péssimo gosto, cuja história pode até terminar em simples tragédia miliciana. 

b) O que não se vê:

O jogo econômico é estratégico. Em 28 de janeiro, Trump impôs novas sanções à Venezuela, e os EUA deixaram de ser os maiores compradores do óleo bruto da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana. Prontamente a Índia se apresentou, e a partir de fevereiro passou a comprar 620 mil barris por dia. É agora a maior importadora do petróleo de lá.

Poucos veem esses movimentos econômicos do xadrez jogado no globo. Índia, China e Rússia se puseram ao lado de Maduro, e nesse momento não importa saber se ele é ou não um modelo de estadista.

Putin, Narendra, Rousseff, Xi Jinping e Zuma
O Brasil certamente é uma peça fundamental do jogo dos BRICS.

As guerras, quando surgem, têm explícitas ou veladas motivações de domínio econômico, e a China sabe que não pode tornar-se dependente de grãos norte-americanos.

Nenhum desses quatro países -- Rússia, Índia, China e África do Sul -- vai tomar medidas definitivas contra o B dos BRICS, pois percebem que por aqui o país apenas vive um hiato insano e grotesco.

Eles podem e vão esperar. 

As reformas são reais, e os movimentos circenses do governo podem ser trágicos. Mas o tema central foi deslocado: claro que há ideologias no tabuleiro, mas o jogo é mais econômico do que ideológico. 

Vivemos momentos não de reformas e sim de contrarreformas.

Os atores externos têm sido... a Base de Alcântara, os EUA, a China; a chegada à Venezuela de aviões da Rússia, e agora a ajuda da Índia. 

Não há ainda democracia direta por aqui. Não está ao alcance de nosso povo decidir se queremos continuar alinhados aos BRICS, bloco que tem economia complementar à nossa, e que vem se tornando a maior força econômica mundial (leia o nosso post A penitente Madalena), ou se preferimos estar a serviço dos EUA, nosso maior concorrente comercial. 

É pena que ainda não possamos decidir nós mesmos.

Vivemos, sim, tempos barrocos.


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