
A democracia
(Ribeiro, Renato Janine. A democracia. São Paulo: Publifolha, 2001)
A palavra democracia vem do grego (demos, povo; kratos, poder) e significa poder do povo. Não quer dizer governo pelo povo. Pode estar no governo uma só pessoa, ou um grupo, e ainda tratar-se de uma democracia – desde que o poder seja do povo. O fundamental é que o povo escolha o indivíduo ou grupo que governa, e que controle como ele governa.
O grande exemplo de democracia, no mundo antigo, é Atenas, especialmente no século V antes de Cristo. A Grécia não era um país unificado, e portanto Atenas não era sua capital, o que se tornou no século XIX. O mundo grego, ou helênico, se compunha de cidades independentes. Inicialmente eram governadas por reis: assim lemos em Homero.
Mas com o tempo ocorre uma mudança significativa. O poder, que ficava dentro dos palácios, oculto aos súditos, passa à praça pública, vai para tó mésson, "o meio", o centro da aglomeração urbana. Adquire transparência, visibilidade. Assim começa a democracia: o poder, de misterioso, se torna público, como mostra Vernant. Em Atenas se concentra esse novo modo de praticar – e pensar – o poder.
Os gregos distinguiam três regimes políticos: monarquia, aristocracia e democracia. A diferença é o número de pessoas exercendo o poder – um, alguns ou muitos. Monarquia é o poder (no caso, arquia) de um só (mono). Aristocracia é o poder dos melhores, os aristoi, excelentes. São quem tem aretê, a excelência do herói. Assim, a democracia não se distingue apenas do poder de um só, mas também do poder dos melhores, que se destacam por sua qualidade. A democracia é o regime do povo comum, em que todos são iguais. Não é porque um se mostrou mais corajoso na guerra, mais capaz na ciência ou na arte, que terá direito a mandar nos outros.
As festas
Mas o que esses cidadãos mais decidem? A sociedade grega não conhece a complexidade da economia moderna. Os cidadãos tratam da guerra e da paz, de assuntos políticos, mas parte razoável das discussões parece girar em torno da religião e das festas, também religiosas.
Imaginemos o que é uma pólis grega. Uma assembléia a cada nove dias, sim, mas não para tratar de assuntos como os de grêmio estudantil (que é o órgão moderno mais próximo de sua militância). E sim, com alguma freqüência, para discutir festas e dividir as tarefas nelas.
Não é fora de propósito imaginar que o Rio de Janeiro, Salvador, o Recife e Olinda dariam excelentes cidades-Estado, se decidissem adotar a democracia direta. Fariam constantes festas ao deus Dionísio (o Baco dos romanos), e à volta disso organizariam a vida social. E é bom pensar numa comparação nada acadêmica como esta, porque a tendência dominante, falando da democracia grega, é acentuar sua seriedade – como se fosse um regime feito para tratar das mesmas questões que nos ocupam. Não é o caso. A política era provavelmente mais divertida, até porque era bem próxima da vida cotidiana.
E poucos foram aqueles, como Platão e outros críticos da democracia, que questionaram a competência do povo simples para tomar as decisões políticas, alegando que para governar seria preciso ter ciência. Ora, um princípio da democracia grega – e de todo espírito democrático – é que, se há ofícios em que o fundamental é a capacitação técnica, a cidadania não está entre eles. Aqui, na decisão do bem comum, na aplicação dos valores, todos são iguais – não há filósofo-rei ou tecnocrata.
O social e o desejo
Muito do que se leu até aqui pode ser encontrado em qualquer manual decente sobre a democracia. Mas compliquemos as coisas com matéria nova. Pode-se formular esta matéria em forma de teses.
A primeira tese é: o avanço da democracia moderna (ou do caráter democrático da política moderna) é provocado pelos direitos, não pela representação.
A representação é importante, mas ela é o aporte negativo da modernidade à democracia. É o que faz a urna ser menos democrática que a praça ateniense. Já com os direitos, a coisa é diferente. Eles são o motor das reivindicações. Através deles se exprime a pressão popular sobre o poder.
(....)
O social nasce do desejo
Vimos que o caráter democrático da política moderna depende dos direitos, mais que da representação; que esses direitos são de teor cada vez mais social; que na Grécia o político e o social estavam próximos ou unidos. Falta acrescentar que esses direitos remetem a algo que chamaremos de desejo.
Quando os críticos gregos da democracia alertam para o perigo de que o povo pobre confisque os bens dos ricos, esse perigo é análogo ao que existe na tirania ou na oligarquia. Para Aristóteles, há três regimes puros e três deformações dos mesmos. São puros a monarquia, a aristocracia e um regime que ele chama de politéia, palavra que quer dizer constituição. São suas deformações – respectivamente – a tirania, a oligarquia e o regime que ele chama de demokratia.
Nos regimes puros, o poder é exercido dentro da lei. Nas deformações, exerce-se o poder pelo capricho, pelas paixões, pela desmedida. Por isso não há grande diferença entre tirania, oligarquia e "demokratia". Nas três, quem tem o poder é movido por um desejo desgovernado. Confiscar os bens dos ricos é tão errado quanto o tirano oprimir os pobres, ou os oligarcas usarem da lei a seu arbítrio.
A quarta tese será que a democracia é o regime do desejo. Ela assim é vista por seus críticos, mas também por parte de seus defensores. O desejo é a matéria-prima dos direitos. Seria errado imaginar que estes surjam de um céu límpido e esplêndido. Eles nascem do desejo.
No Brasil
Pode-se dizer que no Brasil há um partido de convicção democrática, que é o PT, e outro, de discurso republicano, que é o PSDB. Não se quer com isso desqualificar outros partidos, mas apenas esclarecer as idéias deste livro e, em especial, mostrar a tensão existente entre democracia e república.
O Partido dos Trabalhadores tem, de democrática, a aposta na organização de baixo para cima das massas não apenas carentes, mas desejantes. É bom que ele não assuma integralmente o discurso da carência. Isso porque, se chamo alguém de carente, já digo carente do quê: de tantas proteínas, calorias, vitaminas, de casa, de transporte etc. E assim já indico como ele deve suprir sua carência. Privo-o da liberdade de escolher seu rumo. Isso não é democrático. É positivo, no PT, que ele organize as massas sem pré-determinar como os sem-tudo devam suprir suas carências. Também é positivo que ele, mesmo sem o formular nestes termos, aposte nos desejos das massas, procurando convertê-los em direitos. Afinal, a democracia expressa o desejo de ter, e de ser, mais.
Mas, nesse paciente trabalho de organização dos de baixo, nem o PT nem ninguém consegue encontrar o demos, o velho povo único. Sua unidade não existe mais. Toda a política moderna, ao menos a democrática, foi construída em torno da idéia de haver um povo para cada nação ou Estado. Na democracia, o governo representa este povo. E a condição para as revoluções, que deram o tom às democracias nestes duzentos anos, foi que se faziam em nome do povo – tanto as revoluções nacionalistas, que chegaram ao auge de 1950 em diante na África e Ásia, quanto as sociais, que marcaram a Europa da Revolução Francesa até a Russa. O pressuposto era a unidade do povo, mas hoje não há mais como encontrá-la, nem construí-la.
Por outro lado, é republicano o cerne do discurso do PSDB, nosso partido que mais insiste na idéia de coisa pública – do espaço que é de todos e, por isso mesmo, não pode ser apropriado por ninguém em particular. O PSDB acusa o PT de ser corporativista, isto é, de defender os interesses e desejos das corporações – ou grupos – em detrimento do bem comum. Mas com o esvaziamento do grande demos a tendência democrática, como sugerimos, é apostar em demoi menores, que são o que o PSDB chama de corporações.
Eis o problema que opõe nossos dois partidos mais ideológicos: o PT aposta na democracia possível, que é a da organização de baixo para cima, mas para ser conseqüente teria com isso de abrir mão do grande demos, daquele que desde a Revolução Francesa faz um com a nação e legitima o Estado, ao torná-lo democrático. Evidentemente, isso torna menos legítimas as reivindicações desses sub-povos, que podem entrar – e entram – em conflito até antagônico entre si.
Já o PSDB, apostando num espaço comum, numa identidade coletiva, e portanto se filiando a um ideário de cidadania republicana, acaba condenado a condenar a prática democrática que de fato existe. É levemente trágico que os defensores da república, isto é, da participação, venham a atacar a participação que chega a existir.
O grande exemplo de democracia, no mundo antigo, é Atenas, especialmente no século V antes de Cristo. A Grécia não era um país unificado, e portanto Atenas não era sua capital, o que se tornou no século XIX. O mundo grego, ou helênico, se compunha de cidades independentes. Inicialmente eram governadas por reis: assim lemos em Homero.
Mas com o tempo ocorre uma mudança significativa. O poder, que ficava dentro dos palácios, oculto aos súditos, passa à praça pública, vai para tó mésson, "o meio", o centro da aglomeração urbana. Adquire transparência, visibilidade. Assim começa a democracia: o poder, de misterioso, se torna público, como mostra Vernant. Em Atenas se concentra esse novo modo de praticar – e pensar – o poder.
Os gregos distinguiam três regimes políticos: monarquia, aristocracia e democracia. A diferença é o número de pessoas exercendo o poder – um, alguns ou muitos. Monarquia é o poder (no caso, arquia) de um só (mono). Aristocracia é o poder dos melhores, os aristoi, excelentes. São quem tem aretê, a excelência do herói. Assim, a democracia não se distingue apenas do poder de um só, mas também do poder dos melhores, que se destacam por sua qualidade. A democracia é o regime do povo comum, em que todos são iguais. Não é porque um se mostrou mais corajoso na guerra, mais capaz na ciência ou na arte, que terá direito a mandar nos outros.
As festas
Mas o que esses cidadãos mais decidem? A sociedade grega não conhece a complexidade da economia moderna. Os cidadãos tratam da guerra e da paz, de assuntos políticos, mas parte razoável das discussões parece girar em torno da religião e das festas, também religiosas.
Imaginemos o que é uma pólis grega. Uma assembléia a cada nove dias, sim, mas não para tratar de assuntos como os de grêmio estudantil (que é o órgão moderno mais próximo de sua militância). E sim, com alguma freqüência, para discutir festas e dividir as tarefas nelas.
Não é fora de propósito imaginar que o Rio de Janeiro, Salvador, o Recife e Olinda dariam excelentes cidades-Estado, se decidissem adotar a democracia direta. Fariam constantes festas ao deus Dionísio (o Baco dos romanos), e à volta disso organizariam a vida social. E é bom pensar numa comparação nada acadêmica como esta, porque a tendência dominante, falando da democracia grega, é acentuar sua seriedade – como se fosse um regime feito para tratar das mesmas questões que nos ocupam. Não é o caso. A política era provavelmente mais divertida, até porque era bem próxima da vida cotidiana.
E poucos foram aqueles, como Platão e outros críticos da democracia, que questionaram a competência do povo simples para tomar as decisões políticas, alegando que para governar seria preciso ter ciência. Ora, um princípio da democracia grega – e de todo espírito democrático – é que, se há ofícios em que o fundamental é a capacitação técnica, a cidadania não está entre eles. Aqui, na decisão do bem comum, na aplicação dos valores, todos são iguais – não há filósofo-rei ou tecnocrata.
O social e o desejo
Muito do que se leu até aqui pode ser encontrado em qualquer manual decente sobre a democracia. Mas compliquemos as coisas com matéria nova. Pode-se formular esta matéria em forma de teses.
A primeira tese é: o avanço da democracia moderna (ou do caráter democrático da política moderna) é provocado pelos direitos, não pela representação.
A representação é importante, mas ela é o aporte negativo da modernidade à democracia. É o que faz a urna ser menos democrática que a praça ateniense. Já com os direitos, a coisa é diferente. Eles são o motor das reivindicações. Através deles se exprime a pressão popular sobre o poder.
(....)
O social nasce do desejo
Vimos que o caráter democrático da política moderna depende dos direitos, mais que da representação; que esses direitos são de teor cada vez mais social; que na Grécia o político e o social estavam próximos ou unidos. Falta acrescentar que esses direitos remetem a algo que chamaremos de desejo.
Quando os críticos gregos da democracia alertam para o perigo de que o povo pobre confisque os bens dos ricos, esse perigo é análogo ao que existe na tirania ou na oligarquia. Para Aristóteles, há três regimes puros e três deformações dos mesmos. São puros a monarquia, a aristocracia e um regime que ele chama de politéia, palavra que quer dizer constituição. São suas deformações – respectivamente – a tirania, a oligarquia e o regime que ele chama de demokratia.
Nos regimes puros, o poder é exercido dentro da lei. Nas deformações, exerce-se o poder pelo capricho, pelas paixões, pela desmedida. Por isso não há grande diferença entre tirania, oligarquia e "demokratia". Nas três, quem tem o poder é movido por um desejo desgovernado. Confiscar os bens dos ricos é tão errado quanto o tirano oprimir os pobres, ou os oligarcas usarem da lei a seu arbítrio.
A quarta tese será que a democracia é o regime do desejo. Ela assim é vista por seus críticos, mas também por parte de seus defensores. O desejo é a matéria-prima dos direitos. Seria errado imaginar que estes surjam de um céu límpido e esplêndido. Eles nascem do desejo.
No Brasil
Pode-se dizer que no Brasil há um partido de convicção democrática, que é o PT, e outro, de discurso republicano, que é o PSDB. Não se quer com isso desqualificar outros partidos, mas apenas esclarecer as idéias deste livro e, em especial, mostrar a tensão existente entre democracia e república.
O Partido dos Trabalhadores tem, de democrática, a aposta na organização de baixo para cima das massas não apenas carentes, mas desejantes. É bom que ele não assuma integralmente o discurso da carência. Isso porque, se chamo alguém de carente, já digo carente do quê: de tantas proteínas, calorias, vitaminas, de casa, de transporte etc. E assim já indico como ele deve suprir sua carência. Privo-o da liberdade de escolher seu rumo. Isso não é democrático. É positivo, no PT, que ele organize as massas sem pré-determinar como os sem-tudo devam suprir suas carências. Também é positivo que ele, mesmo sem o formular nestes termos, aposte nos desejos das massas, procurando convertê-los em direitos. Afinal, a democracia expressa o desejo de ter, e de ser, mais.
Mas, nesse paciente trabalho de organização dos de baixo, nem o PT nem ninguém consegue encontrar o demos, o velho povo único. Sua unidade não existe mais. Toda a política moderna, ao menos a democrática, foi construída em torno da idéia de haver um povo para cada nação ou Estado. Na democracia, o governo representa este povo. E a condição para as revoluções, que deram o tom às democracias nestes duzentos anos, foi que se faziam em nome do povo – tanto as revoluções nacionalistas, que chegaram ao auge de 1950 em diante na África e Ásia, quanto as sociais, que marcaram a Europa da Revolução Francesa até a Russa. O pressuposto era a unidade do povo, mas hoje não há mais como encontrá-la, nem construí-la.
Por outro lado, é republicano o cerne do discurso do PSDB, nosso partido que mais insiste na idéia de coisa pública – do espaço que é de todos e, por isso mesmo, não pode ser apropriado por ninguém em particular. O PSDB acusa o PT de ser corporativista, isto é, de defender os interesses e desejos das corporações – ou grupos – em detrimento do bem comum. Mas com o esvaziamento do grande demos a tendência democrática, como sugerimos, é apostar em demoi menores, que são o que o PSDB chama de corporações.
Eis o problema que opõe nossos dois partidos mais ideológicos: o PT aposta na democracia possível, que é a da organização de baixo para cima, mas para ser conseqüente teria com isso de abrir mão do grande demos, daquele que desde a Revolução Francesa faz um com a nação e legitima o Estado, ao torná-lo democrático. Evidentemente, isso torna menos legítimas as reivindicações desses sub-povos, que podem entrar – e entram – em conflito até antagônico entre si.
Já o PSDB, apostando num espaço comum, numa identidade coletiva, e portanto se filiando a um ideário de cidadania republicana, acaba condenado a condenar a prática democrática que de fato existe. É levemente trágico que os defensores da república, isto é, da participação, venham a atacar a participação que chega a existir.