Este blog esteve em silêncio durante
muitos meses por um só motivo: qualquer post seria apenas uma
delenda carthago est em favor de uma revolução educacional
que pudesse conduzir o país no futuro a uma democracia direta
digital. Repetições viriam para cansar o leitor.
Mas, agora de manhã, no dia da votação pelo
início do processo de impeachment da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, talvez seja a hora de lembrar a
todos mais uma vez a inutilidade do sistema representativo.
No Brasil de hoje, após a retomada da
“democracia”, duas ideologias teoricamente – e apenas
teoricamente – se digladiam para ditar o projeto social e
econômico do país. Os personagens parecem ter sido tirados da ópera
Fausto, de Gounod.
- socialistas no palco
A teoria:
O primeiro personagem é a esquerda,
que está no poder. Até hoje somente. E mais alguns dias para que o
Senado receba e aceite o processo de impeachment. Isso é claro como o sol – e
veja que este post está sendo escrito muitas horas antes da votação na
Câmara.
Ela, a esquerda hoje no Brasil, está representada principalmente pelo Partido dos Trabalhadores-PT, que em mais de uma década conseguiu enormes avanços sociais, tirando milhões de brasileiros da fome, incluindo ainda parte destes milhões na sociedade de consumo, e levando milhares de excluídos aos aeroportos e mesmo às universidades, seja por financiamentos, seja por cotas.
Ela, a esquerda hoje no Brasil, está representada principalmente pelo Partido dos Trabalhadores-PT, que em mais de uma década conseguiu enormes avanços sociais, tirando milhões de brasileiros da fome, incluindo ainda parte destes milhões na sociedade de consumo, e levando milhares de excluídos aos aeroportos e mesmo às universidades, seja por financiamentos, seja por cotas.
A
prática:
Para
conseguir isso, houve uma mudança de tática para
a tomada do poder.
Foi
duro quando o líder
sindical,
o Lula,
já muito popular, foi
derrotado pelo excelente projeto de marketing, com
apoio da mídia, que conduziu
Fernando Collor,
o “defensor dos descamisados”, a uma vitória maiúscula contra o
projeto de reformas sociais.
Ali
começou o pacto de Fausto (Lula e parte do PT)
com Mefistófeles (o
Mercado),
tal como na ópera de Gounod (em
Gounod há mais romantismo do
que no texto de Goethe). Fausto (PT),
por amor de Margarida (povo),
entendeu que só teria
chance de fazer a felicidade de sua
amada se
tivesse
um corpo belo, que a fizesse
apaixonar-se. Assim, marqueteiramente, nasceu o Lulinha paz e amor, bem
vestido, compreensivo, cumprimentando todos, inclusive os
desafetos como o
ex-presidente Sarney e o
Senador Antônio Carlos
Magalhães. Olhe para mim, Margarida (povo),
fiquei jovem e bonito, e
agora você vai confiar em mim. Não
deu resultado imediato, pois ela passava
por um relacionamento estável, de confiança, com Siebel (Fernando
Henrique), que a tratava como
flor. Ouçam a ária faites lui mes aveux
(leve a ele minhas confissões),
lindíssima,
linda até
mesmo para os que consideram
a ópera uma expressão burguesa que
ilustra toda uma época, com o luxo da elite dentro do teatro
contrastando com a miséria do lado de fora. Passado o tempo de Siebel
(Fernando Henrique),
relações em crise, seu
partido, o PSDB, não fez o
sucessor (além da crise, o pretendente era muito feio) e Fausto (Lula)
ganhou o coração de Margarida (o
povo).
O
segundo pacto com Mefistófeles veio com o chamado mensalão.
Inicialmente pensado para fazer os deputados (demônios de Mefistófeles) votarem
nos projetos populares, o fluxo enorme de dinheiro acabou seduzindo
alguns
membros do PT que não consideraram desonestidade
pegar um pouquinho aqui e ali, e a
coisa acabou
transformando-se,
mesclando-se o projeto de poder com projetos pessoais. Mefistófeles sabe como ninguém seduzir.
A casa
caiu de vez quando uma mulher ingênua, tal como a personagem Martha, na história de Fausto, foi colocada no meio de tudo
isso. Dilma deveria ser apenas figurante temporária, uma peça neutra, mas ao se deparar com o sistema
promíscuo do poder, dia após dia tendo que aceitar ministros
corruptos de partidos de aluguel como forma de governar, a mulher pôs
um ministro da justiça que tudo fez para dar independência à Polícia Federal e
que esta desse apoio irrestrito ao Ministério Público. Antes dela, a prioridade era o tráfico de drogas: todos os dias viam-se notícias de apreensões, às vezes grandes. Agora não
era mais para pegar traficantes, que estes eram apenas consequência, e sim pegar a
causa, ou seja, os responsáveis que não deixavam o dinheiro público
descer para escolas e hospitais. Era para pegar fosse quem fosse em
todo o país.
Começou
a caça às bruxas e apareceram muitas bruxas. Começou a ser chamada, com boca torta, de "essa Diiiiilma", e para surpresa dela os
casos mais notórios eram, evidentemente, os mais recentes, no
próprio partido.
O PT
histórico, de combate à corrupção, teve que mudar o discurso:
Antes...
VOCÊS SÃO CORRUPTOS
Agora...
VOCÊS TAMBÉM SÃO CORRUPTOS
O
Brasil inteiro abriu fogo: TIREM
ESSA LOUCA DAÍ !!! Primeiro,
os deputados e senadores, em
sua maioria investigados ou temendo que as investigações chegassem
a eles; em seguida,
os grandes conglomerados de todos os setores econômicos
– assustados
com o exemplo do que ocorre
na construção, com
bilionários presos; finalmente, as
grandes empresas de mídia, sentindo
o pavor de seus anunciantes e tendo pavor ela mesma. Todos há
décadas acostumados a pegar o dinheiro lá em cima, antes que
esse dinheiro descesse para hospitais e escolas.
Não
encontraram motivo real para
acusá-la. Os boatos da mulherada das panelas, de que a filha enriqueceu (...está provado "cientificamente", meu marido disse!) não colaram: a mulher e a filha não têm nada ilegal ou que não tivessem antes, e não têm nenhum dinheiro no exterior, nem na Bulgária.
O jeito era criar, e criaram. O tal jogo contábil, que o povo não entende e que ouve na televisão dizerem que é crime, a chamada pedalada fiscal, foi simplesmente pegar dinheiro de banco estatal para cobrir despesas sociais e repor no ano seguinte. Não podia? Não podia. Mas está longe de ser pegar dinheiro público para pôr no próprio bolso. Mereceria uma advertência, nada mais. O impeachment que se vai fazer é um ato semelhante a expulsar uma menina negra de um colégio de elite sob pretexto de que ela deu cola para um menino pobre que não sabia a matéria. Muitos outros deram cola, diria a mãe, mas nenhum passou tantas questões, retrucaria a diretora. Na verdade, a diretora não poderia dizer o verdadeiro motivo, o de que era um pretexto para tirar a menina negra da escola.
O jeito era criar, e criaram. O tal jogo contábil, que o povo não entende e que ouve na televisão dizerem que é crime, a chamada pedalada fiscal, foi simplesmente pegar dinheiro de banco estatal para cobrir despesas sociais e repor no ano seguinte. Não podia? Não podia. Mas está longe de ser pegar dinheiro público para pôr no próprio bolso. Mereceria uma advertência, nada mais. O impeachment que se vai fazer é um ato semelhante a expulsar uma menina negra de um colégio de elite sob pretexto de que ela deu cola para um menino pobre que não sabia a matéria. Muitos outros deram cola, diria a mãe, mas nenhum passou tantas questões, retrucaria a diretora. Na verdade, a diretora não poderia dizer o verdadeiro motivo, o de que era um pretexto para tirar a menina negra da escola.
O
impeachment já estava decidido, ou seria pelas pedaladas, ou pelas
contas de campanha, ou pela obstrução da justiça. Aliás, essa
obstrução evidentemente aconteceu. Essa foi a única, e real,
desonestidade que a presidente cometeu, provavelmente no desespero, para não perder o apoio do próprio PT.
Seria mais digno tirá-la por isso, e não por motivos “arranjados”.
Ato II
-
neoliberais no palco
A
teoria:
O
outro personagem é a direita.
Passada a fase de empolgação com a chegada da “democracia”,
sobem ao poder homens mais sérios, no trato da res publica, do que Sarney e Collor, que estavam acostumados a ser coronéis em seus
redutos e tinham administrado o Brasil como se este fosse extensão de
fazendas deles no Maranhão ou em Alagoas. Fernando Henrique,
professor da Sorbonne, Paris VII, sociólogo respeitado, com
histórico de lutas pela democracia, consertou a economia do país
desde que foi ministro nomeado por Itamar Franco. Pôs uma equipe que
fez o Plano Real e tirou o país da espiral inflacionária em que
estava metido. Na medida do possível, governou buscando o interesse
público, comprando brigas com grandes conglomerados para obter
ganhos sociais, como foi a batalha dos genéricos, e
estendendo programas como o
Bolsa-Escola para todo o país.
A
prática:
Homem
culto, preparado, é claro que o
Fernando Henrique presidente
percebeu ainda mais de perto do que quando estava no Senado a
promiscuidade de um sistema em que bancos e outros setores econômicos
financiavam campanhas de deputados de todos os partidos para que
esses congressistas votassem por eles e ainda chegassem a conseguir
ministérios
para favorecer a
passagem do dinheiro público para suas empresas. Mas, inteligente,
ao contrário de Dilma Rousseff, não quis mexer no vespeiro, com
medo da reação (e que reação, como estamos vendo até
agora). Assim como Siebel que foi fraco ao lutar por Margarida, FHC preferiu fechar os
olhos e aceitar as limitações. Fechou os olhos até para as
grandes negociatas, com imensos
prejuízos para o país, no que acabou ficando
conhecido pelo título de
“privatarias tucanas”.
A
direita hoje tem a chance de
voltar ao poder, aliando-se ao PMDB, partido grande, de aluguel, que
não se importa em seguir linhas ideológicas ou econômicas
díspares, desde que esteja no poder, ocupando ministérios,
cumprindo sua obrigação de mediar recursos para os grandes grupos.
Ato
III
-
epílogo
Montesquieu,
em sua obra máxima, O Espírito das Leis,
deixa claro no Livro Quarto, capítulos IV e V, que a tripartição
do poder não terá êxito se não houver um parlamento virtuoso e
que este é decorrente da educação de seu povo. O brasileiro
ingenuamente quer novas eleições para trocar todos os
parlamentares. Ora, encha uma panela inteira com grãos de arroz;
em seguida ponha nela uma xícara de feijão; mexa bastante; agora,
tire um copo de grãos dessa mesma panela: sairá muito mais arroz
do que feijão; devolva o copo à panela, mexa e tire de
novo: sairá de novo muito mais arroz; e isso se repetirá enquanto
tirarmos da mesma amostragem. Montesquieu é de uma obviedade que
ainda hoje impressiona. Ao
ver gente que tem algum
estudo bater panelas é
impossível não nos
lembrarmos de Montesquieu.
O
problema do Brasil não é ir em direção ao neoliberalismo da
Merkel ou ao socialismo de
Chavez.
O
problema é que nossas crianças e nossos adolescentes estão
distantes de exemplos de virtude, tanto em casa quanto na escola. Em casa, ouvem
os pais falarem de
cultura e honestidade,
mas os veem depreciar os
humildes e furar filas e valorizar coisas supérfluas. Na escola, ouvem os professores falarem de
solidariedade e consciência social, e os veem cuidar apenas de suas
próprias vidas e desfilar com o novo carro que compraram.
Hoje começam a tirar Dilma Rousseff, a louca.
Paradoxalmente,
os corruptos tiram a doida em nome do combate à corrupção. Em
nome do combate à corrupção, querem pôr em
prática um projeto de autoajuda, para salvarem-se todos das
acusações de corrupção. O
Vice-Presidente Michel Temer apresenta uma proposta vencedora, ou
seja, compõe-se com todos os que estão ameaçados para
juntos votarem
as reformas “necessárias”:
a)
restauração do financiamento privado de campanhas, tranquilizando
todos os segmentos que se
beneficiam de verbas dos ministérios,
ou seja, garantindo a
continuidade do sistema.
b)
desmantelamento da estrutura que alimenta as investigações da
Lava-Jato. Os que consideram isso impossível, é só se informar
sobre a tentativa que o congresso fez em janeiro último, alterando o projeto
orçamentário da União para 2016, cortando 151 milhões do
orçamento da Polícia Federal. A verba foi reposta pelo então
ministro Eduardo Cardozo, que
transferiu recursos do próprio Ministério da Justiça, exatamente os 151 milhões cortados pela Câmara de Deputados, evitando
afetar as operações em
andamento. Uma simples pesquisinha de Google pode confirmar esses dados.
c)
reforma do judiciário,
ampliando o número de membros do Supremo Tribunal Federal, o que
permitiria ao novo governo nomear juízes de confiança para “puxar”
os processos da Lava-Jato e dar outro rumo às conclusões,
salvando-se todos.
É
claro que para compor-se com
o PSDB, Temer vai dar curso a
uma agenda de reformas
neoliberais, como desobrigar o governo de cumprir percentual de gasto
com educação e saúde, de forma a
permitir a
privatização de serviços em larga escala e aliviar as contas da
União. Virá também a
chamada modernização das
relações trabalhistas, com perda de direitos que, na visão
neoliberal, hoje impedem em grande parte o investimento de empresas na
contratação de mão-de-obra. Virão
as terceirizações, e as
transferências de serviços
públicos para a iniciativa privada. Essa será
a tônica de um novo governo
supostamente mais eficiente, com
apoio do congresso, tornando
o Brasil mais atrativo aos investimentos estrangeiros para
sair da crise.
Estar
a favor ou contra essas últimas propostas é fazer uma opção ideológica.
O
problema é que no Brasil tanto a proposta liberal quanto a social
serão conduzidas por governantes e parlamentares
que não representam os interesses da população. Não serão
virtuosos fora do papel.
O
problema brasileiro é um só: a
formação de suas crianças.
Isso
só vai ser resolvido com o tempo. Gramsci estava certo quando
analisava as formas de chegada ao poder que podem conduzir a resultados permanentes. É de baixo para cima,
instruindo os pequenos e os
que estão em volta. Isso é
trabalho para os poucos brasileiros que dão exemplo de virtude:
formar outros brasileiros assim, crianças e adolescentes, para que um ciclo virtuoso comece a se
reproduzir até ganhar giro geométrico. Na peça de Gounod, ouçam a ária anges purs, anges radieux (anjos puros, anjos radiosos).
Um
desses meninos vai chegar lá em cima com menos demônios como adversários.
Aí, sim, poderá enfiar rios
de dinheiro na educação, criando escolas de tempo integral que
façam como na Noruega. Lá,
eles põem os
lanches para
ser vendidos sem que haja
balconista: a criança pega o
que quer e deixa o dinheiro numa caixinha, ela mesma contando e
pegando o troco.
Assim
como as crianças hoje ensinam ecologia a seus pais, em 30 ou 40 anos
teremos
um parlamento decente.
A
democracia direta virá, mas a roda da história é lenta, como o
ponteiro pequeno do relógio
que marca a hora: ele
é lento, mas anda sem que
possamos perceber.
Até
lá, continuaremos a nos xingar de coxinhas ou petralhas.
Inutilmente.
Ah, em
tempo: no fim da ópera de Gounod, Margarida se salvou.
![]() |
Do autor do Blog, disponível na amazon.com.br |