O HÁBITO FAZ O MONGE

A arte e sua mimesis

No romance de Mark Twain, o príncipe e o mendigo trocam de lugar para que um saiba como é viver do outro lado.
Feita a troca, o povo passa a adorar aquele que usa as roupas do príncipe.
Aqui no Brasil a adaptação dos papéis seria imediata, cada um sentiria a pele do outro como se fosse a sua própria. 
Não faltam exemplos.
Um nasceu em berço realmente de ouro, em Belo Horizonte, filho e neto de políticos importantes, e aos treze anos já surfava em Ipanema, onde morava no Rio. Começou a vida adulta ao ser nomeado Secretário de Gabinete Parlamentar, aos dezoito anos, quando seu pai, genro de Tancredo Neves, era Deputado Federal. Daí para frente viveu sempre da carreira política do pai ou de sua própria, ancorado na fama do avô.
O outro brotou na favela Beira-Mar, em Duque de Caxias, no Rio, filho de praticamente ninguém, e aos treze anos iniciou-se no tráfico, surfando em cima dos ônibus, fazendo entrega de papelotes de coaína. Aos dezoito anos, já na vida adulta, ajudado por um amigo, passou a comandar uma “boca de fumo” na Beira-Mar, e viveu sempre da carreira das drogas.
Não sabemos se um dia essas almas se encontraram em alguma esquina do Rio de Janeiro. É até possível, embora talvez eles mesmos não saibam.

Mas são almas rigorosamente iguais. Tiveram apenas percursos diferentes, por suas origens diferentes.
E é muito fácil ver o que faz tantas pessoas votarem no bem nascido para que ele seja o homem escolhido para representá-las e decidir por elas:
A aparência. 
Vivemos numa estrutura de representação em que o marketing político tem a capacidade de convencer mídias e pessoas, e vestir um monstro de tal forma que ele seja visto como homem sério e que zela pelo bem de todos.
Em Mark Twain, também foi difícil o povo descobrir quem era o verdadeiro príncipe quando os dois trocaram de roupa.

É isso a democracia representativa.

Um dia a democracia direta virá, pois só está amadurecendo historicamente.


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A PENITENTE MADALENA


Madeleine pénitente, Georges de La Tour

A intenção dela é a melhor possível: deixar de pecar, rezar para que o pecado a deixe de vez. Mas são muitas as variáveis e, por mais que ela se esforce, jamais vai poder entender que Ele quis mais evitar que homens cheios de ódio cometessem pecados bárbaros do que dar atenção à possível falta que ela cometera. 
Georges de La Tour, pintor francês do século XVII, registra magistralmente essa mulher diante de uma vela que toma o lugar que antes era dela, vaidosa, diante do espelho. Ela está pensativa, entendendo pouco numa penumbra chiaroscuro típica do maneirismo daqueles confusos tempos de intolerância religiosa. Isso vale para a era primitiva de Cristo e para a moderna de De la Tour.
E vale para os nossos dias também, dias de intolerância civil, quase religiosa. Dias em que estão no obscurantismo muitas madalenas, principalmente as mais velhas que viveram num país que não lhes deu muito acesso à escola e até hoje formam suas opiniões a partir do marido, do padre ou do pastor, e da voz grave dos âncoras da televisão. Essas mulheres, a quem foi negado conhecer o exemplo das revoltosas de Atenas. Essas mulheres que ouvem os filhos e netos falarem coisas que trazem da escola, coisas que não repetem o que diz a tevê.
Que mundo confuso, meu Deus.
Mas convenhamos, são muitas as variáveis que atrapalham esse jogo.

A ver uma sucinta ordem dos interesses:
  1. Crise das commodities: os dois candidatos, Dilma e Aécio, convencem melhor o povo de que vão fazer o que já sabem que não é possível, mas cumprem o que lhes mandam os marqueteiros (bem pagos com caixa 2 de campanha), e decidem o segundo turno quase emparelhados.
  2. Lava-Jato: a nova presidente nomeia Cardozo para o Ministério da Justiça, o homem que pegou Celso Pita em São Paulo, e o novo ministro dá força à Polícia Federal, que por sua vez presta irrestrito apoio às investigações do Ministério Público. Membros investigados do próprio PT tentam manobrar para substituí-lo, sem sucesso.
  3. Investigados: o Congresso se  aproveita da crise para tentar desestabilizar o governo e provocar alguma mudança que possa barrar as investigações. Conseguem desestabilizar o governo, mas pouco conseguem quanto às investigações.
  4. Revanche partidária: na presidência do PSDB, Aécio luta para que o partido faça coro pelo impeachment, argumentando internamente que as próximas eleições serão do partido; assim, por um acordo o PMDB fica de cumprir as medidas impopulares e deixar o país pronto para um governo de nova agenda em 2018 (leia o post Dez Passos, de 13 de dezembro de 2016).
  5. Grande Imprensa: corte de gastos com a grande imprensa (redução de 34%) e  promessas de marco regulatório, por um lado, e por outro, a  esperança de uma agenda mais favorável ao empresariado fazem a grande mídia aderir ao pretexto de impeachment.
  6. Bancos: com a nova agenda, os bancos atiçam seus lobbies e exigem urgência nas medidas que os favorecem (veja o post O Juramento dos Horácios, de 16 de fevereiro de 2017).
  7. Brics: a construção do porto em Cuba (inteligente e oportuna a reaproximação americana), o projeto de Banco e moeda alternativos ao dólar, o cabo submarino, e a futura estrada para escoar os grãos brasileiros pelo Pacífico, via Peru,  para garantir o futuro abastecimento chinês precipitam o apoio americano à derrocada de empresas brasileiras de excelência do setor de infraestrutura, como a Petrobrás e a Odebrecht. Com a corrupção sistêmica do país, motivos não faltam. Apoio velado de Obama ao golpe parlamentar.

O restante é mais fácil de entender. Os dois líderes dos maiores partidos, Temer e Aécio, devido a terem sido alcançados de forma contundente pelas delações, além de não conseguirem avançar no combate ao combate à corrupção, perderam de vez a credibilidade para conduzir o Congresso nas medidas que vão contra a vontade da população. Sua permanência poderia trazer gente de todas as cores para as ruas e seria melhor mudar o comando de vez para que tudo possa leopardianamente permanecer como está.
Cadáveres, os dois corpos já não servem mais. Boa oportunidade para a grande mídia simular imparcialidade e mostrar-se implacável com os antigos protegidos.

Mas a pobre Madalena continuará a ver somente fachos de luz e muita sombra. E a intolerância continuará a dominar as discussões sociais. Paris bem vale uma missa? Talvez.

Os capítulos que estamos vendo são finais. As meninas de hoje, as jovens que o corte de gastos quer impedir de estudar o que hoje estudam, estão longe de ser madalenas.

A democracia direta está vindo. Só não enxerga quem vê apenas até onde seu nariz alcança.


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