O JURAMENTO DOS HORÁCIOS


O juramento dos Horácios, Louis-David

 
Não se apavorem. Nada mudou. São apenas os bancos, sempre os bancos.

Hoje o Senado brasileiro aprovou a famosa PEC 55, que congela os gastos públicos pelos próximos 20 anos. É claro que foi aprovada como sendo remédio imprescindível para conduzir o país a uma gestão mais responsável. Não se pode gastar mais do que se ganha. A ideia é válida e um ajuste fiscal era realmente necessário.

O problema nosso, como sempre, está centrado na desconexão entre o sistema representativo e seus representados. Jean-Jacques Rousseau queria que o soberano, ou seja, o povo, votasse diretamente as leis e que o governante apenas executasse a chamada Vontade Geral. Aqui no Brasil, tanto o governante quanto os representantes do povo usam o poder que recebem pelo voto: ou para representar a si mesmos ou para cuidar dos interesses daqueles que os financiam. Isso é sabido, mas ainda assim nos espanta.

Na tela de Jacques-Louis David, Le Serment des Horaces (O Juramento dos Horácios), os três irmãos juram ao pai sacrificar-se até à morte pela República, ainda que isso cause a desgraça de todos os demais. No canto, ficam os desprotegidos, que sofrem sem nada entender.

É, de certo modo, também o retrato fiel de nosso momento. Nossos três representantes maiores, os presidentes Michel Temer, do País, Renan Calheiros, do Senado, e Rodrigo Maia, do Congresso, todos ao que parece também jurados para cumprir os compromissos assumidos com a República. Ou melhor, com quem talvez os tenha posto no comando da República.

Entendamos.

A operação Zelotes, deflagrada em 26 de março de 2015 para apurar fraudes fiscais de cerca de R$ 19 bilhões, avançou rapidamente e em poucos meses chegou à Bradesco Seguros (para conferir, ponham no Google: Carf, fraudes, Bradesco Seguros). Paralelamente à operação Lava Jato, outras investigações correm no país, maiores ou menores – veja-se o que ocorre por exemplo em Ribeirão Preto, em Osasco, etc. O sinal de alerta soou forte no meio financeiro: as investigações estão chegando aos bancos. Por sorte da Bradesco Seguros – sorte, apesar da tragédia, bem entendido –, justamente o presidente da empresa, Marco Antonio Rossi e seu Diretor Geral, Lúcio Flavio de Oliveira, os homens que comandavam as áreas de seguros e previdência privada do Bradesco, e pessoas da mais próxima confiança de Luiz Carlos Trabuco, o presidente do Banco, sofreram um acidente aéreo no dia 10 de novembro de 2015, ou seja, seis meses depois de iniciada a investigação. Eles estavam num jatinho que caiu numa área rural de Minas Gerais (conferir? ponham Google: Bradesco Seguros, acidente aéreo). A possível fraude de bilhões não é nada em si para bancos poderosos, o problema é que isso pode acender um pavio de complicações (im)previsíveis, com procuradores federais chegando cedo para um cafezinho nas salas da alta administração das principais instituições financeiras do país (lembremos que a operação Lava Jato tem esse nome por ter começado pela fraude apurada em um simples posto de gasolina que lavava carros... e dinheiro). Quando a Zelotes chegar no ponto – e já está quase chegando a hora de pedir os mandados de prisão preventiva – esses executivos do Bradesco não poderão mais esclarecer nada, e nem depois, se fosse o caso, fazer uma possível delação premiada. Vidas perdidas, uma certeza. Perdas para a investigação, uma possibilidade.

A partir do crescimento da Zelotes, a ideia de trocar o presidente do Brasil ganhou mais força no Congresso e na imprensa: talvez fosse a hora de aproveitar a crise econômica provocada pela queda do preço das commodities. A crise era real, acompanhem o gráfico abaixo.



Essa crise foi aprofundada pelas ações do governo Dilma, que errou ao apostar na desoneração, favorecendo as indústrias na esperança de manter o nível de consumo. Não deu certo, o rombo cresceu e deu margem ao consequente desemprego e à insatisfação popular. Bons administradores sabem que nas crises surgem as grandes oportunidades. E o momento tornou-se propício para uma mudança de cenário: sob o pretexto da crise, aos investigados bastaria convencer todos a trocar o presidente do Brasil por alguém que pudesse “estancar essa sangria”. Conseguido o primeiro objetivo, feita a troca de presidentes, tenta-se hoje diminuir a independência de procuradores e juízes, com medidas que ainda não se concretizaram somente porque houve alguma reação popular, e gritos de muitos desses juízes e procuradores ecoando aqui e ali em parte da imprensa. Mas tudo tem seu tempo.

Os compromissos do novo governo Temer já foram tratados neste blog em um post anterior (leiam Sem a música a vida seria um erro). Mas salta aos olhos também o proveito dos bancos por trás de quase todas as medidas.

Sherlock Holmes ensina a Mr. Watson que toda investigação começa por suspeitar de quem mais se beneficiou com o crime. Horácios ou Curiácios?



a) PEC 55: Já que era preciso mexer no controle de gastos, façamos de forma a beneficiar diretamente quem?
OS BANCOS, é claro: vamos congelar os gastos públicos por 20 anos, reservando todos os recursos economizados para pagamento de dívidas, e sem nenhuma contrapartida de reinvestimento. Para entender melhor: o minério de ferro da Vale do Rio Doce, que quatro anos atrás era vendido por US$ 192/ tonelada, está sendo vendido hoje por US$ 41 (confira no site  vale.com). E assim também quase todos os nossos demais itens de exportação. E tem gente que pensa que foi só o petróleo que caiu imensamente de preço. O Brasil tem matriz exportadora, e não aproveitou o período de vacas gordas para formar poupança interna, apostou apenas na expansão do consumo e na atração do capital especulativo que vinha de fora. Agora, com ou sem o teto, só vamos começar a equilibrar as contas quando o quadro externo for revertido. O pagamento dos juros não paga a dívida, só empurra, pois o principal só vai começar a ser resolvido quando a crise das commodities passar. E teto existe para os gastos, não existe teto para pagamento de juros nem serviços da dívida: estes estão livres e priorizados. A bola de neve vai continuar crescendo praticamente na mesma proporção, paguemos um pouco mais ou um pouco menos. Ou seja, vamos paralisar o país apenas – realmente apenas – para pagar juros e rolar dívidas, sem possibilitar a formação de poupança interna ou aumento de produção. Isso beneficia somente os rentistas e o setor financeiro. Em outras palavras, todo o esforço será feito apenas para não prejudicar os bancos, para engordar mais os bancos. Sempre foi assim.




b) REFORMA DA PREVIDÊNCIA
O homem está vivendo mais, as populações envelhecendo, e os jovens tendo menos filhos, ou seja, o mundo todo precisa reformar seu sistema previdenciário. Aqui, como fazer de forma que beneficie... quem?
OS BANCOS, é claro: vamos centrar a reforma da previdência não só na faixa etária, como estão pensando os europeus, mas sim na dissolução do sistema como um todo, forçando todos os possíveis beneficiários – funcionários públicos ou não – a pensar em contratar um plano privado. Você não já está pensando nisso, leitor? Os planos privados terão um enorme boom, beneficiando todo o segmento. Em outras palavras, beneficiando os bancos.



c) CONGELAMENTO DE VERBAS PARA SAÚDE E EDUCAÇÃO
Com o sucateamento ainda maior da saúde e da educação, o que será percebido em poucos anos, quem tem condições, e não o fez ainda, vai ter que pensar em planos privados de saúde e em seguros para garantir a educação dos filhos (educação que tende a ser crescentemente privatizada). Muita expansão de negócios projetada para os já existentes Bradesco Saúde, Itaú Saúde, Bradesco Seguro Educacional, etc – apenas para citar os maiores bancos.

Há sinais? Não seriam necessários, mas é fácil o leitor observá-los. Levantamento da revista CartaCapital, publicado em 9 de dezembro, mostra que, dos 70 compromissos publicados na agenda do Secretário da Previdência, Marcelo Caetano, desde que assumiu o cargo, em 21 de julho, 21 foram com representantes de bancos, fundos de pensão privados e fundos de investimento, e três com organizações patronais. O site, para conferência dia a dia, é

O governo Michel Temer entende que pode não durar muito.

Mas nem todos parecem ter percebido a pressa, a urgência, que têm os três Horácios – Temer, Renan e Maia – em aprovar logo as medidas chamadas necessárias. Pressa, muita pressa. Quase tanta quanto tem o Ministro José Serra em desfazer-se do pré-sal. Como se o Brasil a partir disso fosse realmente começar a trilhar um caminho seguro.

A preocupação do governo é com a contenção de gastos?

A presidente Dilma, a louca, foi afastada no dia 12 de maio de 2016. Ela havia pedido em março autorização ao Congresso para elevar o rombo fiscal do ano para a casa dos R$ 96 bilhões. Um absurdo, disseram muitos congressistas. No dia 20 do mesmo mês, uma semana após o afastamento, o novo governo provisório encaminhou ao Congresso a mesma proposta, mas alterou o valor. Pediu autorização para elevar o rombo de gastos para R$ 170,5 bilhões. Estavam mesmo preocupados com a contenção de gastos? E não nos esqueçamos de que dois dias depois de afastar definitivamente a presidente por ter cometido pedaladas fiscais o Congresso tornou legais as mesmas pedaladas.

Na tela de Louis David, o maior pintor da era revolucionária francesa, vemos os três Horácios jurando amor à República. Eles estão altivos, ruidosos, pegando em armas. Repito, observem no canto a triste e belíssima imagem dos que sofrem com a luta, as mulheres, os simples, os que nada podem fazer senão lamentar.

Nossos três Horácios brasileiros, em nome da República, parecem ter feito outro tipo de juramento.

Isso só vai acabar quando educarmos o nosso povo e votarmos diretamente nossas leis.


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SEM A MÚSICA A VIDA SERIA UM ERRO




O que está acontecendo, afinal?
Muito barulho e pouca música.

Quando as pessoas estão insatisfeitas e não entendem o que se passa, gritam. E gritam por socorro, desejando tambores que anunciem salvação. Ciclicamente isso tem acontecido ao longo da História. Se a orquestra desafina, parem a música, derrubem o maestro, chamem os tambores: é hora de tambores.

Macri foi eleito na Argentina, May é a nova Thatcher da Inglaterra, Trump venceu até contra a grande mídia, Hofer é o favorito na Áustria, Rajoy foi eleito na Espanha, e o segundo turno na França será disputado entre Fillon e Marine Le Pen, ambos de extrema direita. 

Ingenuidade alguém pensar que aqui no Brasil, com a derrocada do PT, seria a vez do crescimento do PSOL ou de outra agremiação alinhada com reformas sociais. Mais próximos estamos de eleger um Bolsonaro (não necessariamente ele) ou um Crivela. A História é assim. Há gente que acha que se Hitler não tivesse chegado ao poder o mundo teria tido outro rumo. Como se não estivessem no poder, no mesmo período, Mussolini, Stalin, Franco, Salazar, Perón e Vargas. A Alemanha sem Hitler seria a mesma, apenas o nome do nazista seria outro.

Mas nunca tivemos o mesmo problema na Suíça. Não porque seja um país pequeno, de exceção.
A Suíça sofreu uma guerra civil entre liberais e conservadores em 1847, guerra que foi vencida por Guillaume-Henri Dufour, um engenheiro civil militar,  defensor das ideias de Jean-Jacques Rousseau. Dufour, natural de Genebra, como o filósofo, conseguiu a pacificação do país levando os Cantões a adotar o sistema de democracia direta como forma de eliminar os políticos que sujeitavam todos a leis que contrariavam a vontade popular. Derrubar muros para construir pontes, disse ele. É o maior herói da história helvética. Ele instituiu o ensino obrigatório, e seguiu os princípios ensinados no segundo volume do Emílio, obra em que Rousseau revoluciona a educação. Inicialmente, nada de livros, diz Rousseau, na primeira infância é preciso buscar a aproximação entre as crianças e a natureza: deve-se ensinar os pequeninos a cuidar de plantas e animais (daí o jardin,  jardim de infância, não o kindergarten de Froebel, que depois deformou a ideia de Rousseau), desenvolvendo primeiro nelas, nas crianças, a sensibilidade, a solidariedade ante a dor dos outros seres vivos, para só depois dar a elas conhecimento. Sem tal formação prévia, todo conhecimento recebido pela criança pode ser usado no futuro para oprimir seus semelhantes. Veja-se que o Congresso brasileiro é composto quase todo por deputados e senadores que possuem curso superior, e nem por isso são pessoas melhores. O general Dufour era um estadista que paradoxalmente preocupava-se até com a dor dos inimigos. Foi ele quem criou a Cruz Vermelha Internacional, fruto de sua experiência na guerra em que demonstrou ser possível vencer batalhas com poucas baixas para si e também para o inimigo.

A Suíça é filha de Rousseau e de Dufour. Mas a Suíça é principalmente fruto da educação. Lá a democracia direta faz com que o país passe ao largo das crises políticas e econômicas, com baixas alíquotas de impostos, economia livre e plena liberdade individual para todos os cidadãos. Tudo decidido diretamente por eles.

Aqui no Brasil a realidade triste acompanha a crise de representatividade que assola todo o mundo ocidental, fazendo com que o povo, desnorteado, busque um salvador da pátria, um homem forte que ponha ordem na casa. Um tambor bem retumbante.

O agravante no Brasil é que essa desordem ultrapassa a crise econômica e escancara a realidade de sermos um país em que a corrupção sempre foi sistêmica, percorrendo todos os segmentos, do homem mais simples das ruas aos empresários mais prósperos, e tudo referendado por um sistema representativo purulento. Vivemos sobre um esgoto fétido, e sempre soubemos disso, mas desta vez a tampa do bueiro voou longe e não estão conseguindo recolocar.

Michel Temer aceitou alguns pactos para satisfazer sua vaidade de chegar ao poder. Sim, vaidade, apenas vaidade, porque ele não é caracterizado por assaltos ao dinheiro público. Convive com a corrupção, aceita-a nos demais, mas vai ser difícil encontrar dinheiro no seu bolso, assim como será difícil também encontrar nos bolsos do Fernando Henrique, da Dilma e mesmo do Bolsonaro. Os valores e os desvalores nem sempre são iguais. Estes quatro são capazes de fechar os olhos aos ladrões, mas na verdade os desprezam. Hitler também era assim, desprezava Göering.

Leiamos aqui os três pactos firmados tacitamente por Michel Temer, e talvez possamos entender este movimento tão polifônico quanto dissonante dessa desmúsica brasileira:

1) PACTO COM OS INVESTIGADOS:
Aos corruptos deputados e senadores, está claro que Temer prometeu inibir as operações da Polícia Federal quando estivesse no comando. Para tanto, deixaria que seguissem em frente as tentativas do Congresso de legislar no sentido de pouco a pouco retirar força do Ministério Público e das investigações. Os planos já estavam traçados antes, pelos principais investigados. Quem ainda tiver estômago, digite no Google os nomes, por exemplo, de Jucá ou de Renan, junto com a palavra “gravação”. São gravações anteriores ao processo de impeachment. As tentativas de barrar a prisão de condenados em segunda instância, anistiar caixa 2 e tornar passíveis de condenação juízes e procuradores, por abuso de autoridade, só ainda não viraram lei porque setores barulhentos de parte da imprensa e da sociedade reagiram de imediato.

2) PACTO COM OS BATEDORES DE PANELAS:
Aos conservadores inocentes, que creem estarem seus filhos sendo doutrinados politicamente por professores comunistas, e pelas redes sociais, Temer oferece uma reeducação. Para Temer – que é culto, professor de direito constitucional – a chamada “escola sem partido” é uma iniciativa boçal, que aos olhos dos intelectuais do país mostra-se claramente como censura política. Inteligente, Temer resgatou um bom projeto de reforma educacional, esquecido no congresso, que previa a escola de tempo integral -- uma antiga luta de todos os que clamam por uma verdadeira reforma do ensino. O cavalo de Tróia? É simples: deixando de ser obrigatórias, as disciplinas que dão margem a discussões políticas cairiam para segundo plano, o que atende às necessidades de despolitização mais imediatas. De quebra, a reforma poderia ser bem vista por empresários e pelos próprios jovens, pois o currículo dá mais liberdade aos alunos, além de prepará-los para um Brasil competitivo, formando trabalhadores tecnologicamente mais capacitados. 

3) PACTO COM O PSDB:
Ao partido que efetivamente representa o liberalismo clássico no país, com toques neoliberais, Temer promete cumprir a agenda do ajuste fiscal e a desregulação das amarras da legislação trabalhista e previdenciária. Ele precisou do PSDB para tirar Dilma e conta com o apoio do partido para governar no congresso. Claro que isso não é exigência dos membros corruptos do PSDB que, assim como os que são corruptos no PT, não têm nenhuma ideologia. Quem dita o perfil do PSDB são os Fernandos Henriques e Artures Virgílios, que sonham com uma pátria que se aproxime da escola de economia austríaca. Os Aécios têm poder, mas não sabem e nem se interessam por saber quem foi Mises: querem apenas dinheiro. O PSDB exige de Temer que cumpra esta agenda neoliberal,  pois o partido já se considera o próximo governo e encontraria, assim, a casa já previamente arrumada, sem necessidade de tomar as chamadas medidas impopulares.

São esses três segmentos que disputam o poder hoje no país. Acrescentem-se aí os movimentos populares que, mesmo baqueados pelo afundamento do PT, possuem nível de organização capaz de fazer crescente barulho nas ruas, agregando os partidos nanicos de esquerda e os grupos minoritários.

E todos os segmentos se odeiam ou se desprezam uns aos outros.

O espetáculo é barulhento, mas aproximando bem o ouvido podemos perceber que até se assemelha a uma peça musical. É tenso, com alternância de movimentos entre adagio, andante, allegro, e prestissimo. Pena que no Brasil poucos aprendem música na escola. Poucos entendem o tom do que está acontecendo.

E Nietzsche nos lembra, em seu Crepúsculo dos Ídolos, na máxima 33... ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum (Sem a música a vida seria um erro).

A democracia direta virá, com o tempo. Depois de fazermos uma revolução educacional que lembre, ainda que de longe, os ensinamentos de Rousseau e Dufour. Aí não precisaremos mais de representantes, que nunca nos representam nem vão representar. Tomaremos nossas próprias decisões sem crer em promessas. Pode acreditar.

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ESCOLA PARTIDA





Linda esta imagem dos estudantes da Universidade Federal do Paraná (UFPR), derrubando o busto do antigo Ministro da Educação, Suplicy Lacerda, que proibiu em 1964 os debates políticos entre os estudantes. Guardadas as proporções, lembra a reação popular – Stalin, Saddam Hussein – contra o autoritarismo. Só que o autoritarismo hoje é mais sutil, é montado sobre a ignorância dos povos.

A História é construída em zigue-zague, e não linearmente. Aqui neste blog já foi fartamente explicada a verdadeira intenção do impeachment, que era todos se salvarem das prisões que se aproximavam. O fim de operações tais como as da lava-jato virá aos poucos. Cercear essas operações logo no início não seria inteligente, pois despertaria o repúdio de muitos e até da imprensa internacional, deslegitimando ainda mais o novo governo. Isso virá num segundo momento, sem permitir alarde: ainda há muitos olhos voltados para o Brasil. Mas, mesmo para os mais ingênuos politicamente, inclusive para os que acreditaram estar lutando contra os corruptos, a confirmação de que o motivo da derrubada era outro pôde ser vista já dois dias depois da deposição. Sim, dois dias depois do impeachment de Dilma Rousseff por crimes de responsabilidade fiscal, o Congresso Nacional aprovou uma lei que torna o que então eram “pedaladas fiscais” em procedimento permitido. Na sexta-feira, dia 2 de setembro, os mesmos parlamentares que condenaram Dilma Rousseff pelo crime de responsabilidade fiscal aprovaram a Lei 13.332/2016, publicada no Diário Oficial da União, e as pedaladas foram flexibilizadas – é só conferir o DOU pela internet.

Em seguida, no dia 19 de setembro último, o senado tentou aprovar uma lei que anistiaria todos os envolvidos em processos relacionados com desvios de dinheiro supostamente de campanha. Por sorte da sociedade, não tiveram (ainda) sucesso. Mas já estão liberando todos os bilhões bloqueados tanto da Odebrecht quanto da OAS. E tudo isso já compunha, é provável, o pacote da tomada do poder.

Ora, para que artimanhas como essas sejam possíveis em qualquer país são necessárias algumas condições:

a) num regime de exceção: controle da imprensa e repressão às resistências.
b) num regime democrático representativo: uma imprensa conivente e um povo que não tenha sido educado para aprender a pensar por si mesmo.

É exatamente nesse contexto que chegou ao Planalto o projeto da Escola sem Partido, uma forma de garantir que os jovens sejam educados politicamente apenas pela grande imprensa.

Ocorre que os parlamentares atuais – vide a votação pelo impeachment na Câmara dos Deputados, cujas imagens tragicômicas rodaram o mundo – são parlamentares de muito baixo nível intelectual, e o projeto da Escola sem Partido era explícito demais. Burrice. Não se faz assim. Se querem que todos os carros tenham um kit de primeiros-socorros para enriquecer A ou B, é preciso alegar motivos que façam todos pensar nas vidas que poderiam ou não ser salvas. Deixe que a sociedade fique discutindo o conteúdo da caixinha de enfermagem – mais esparadrapo ou mais gaze? Tanto faz. O importante é comprarem a caixinha.

O Brasil tem hoje o que talvez seja o seu congresso mais despreparado. Durante o regime militar, em geral faltava apenas virtude aos parlamentares. Hoje também a virtude é rara, mas há o agravante de ser um congresso culturalmente grotesco. Às vezes tenho a impressão de que jamais publicaram Montesquieu em língua portuguesa. O pior é que publicaram, mas os brasileiros ainda não aprenderam a ler. Os presidentes hoje são muito mais inteligentes do que a média dos congressistas. O Planalto logo deixou de lado a tal Escola sem Partido e recuperou um antigo projeto – bom –, parado na Câmara desde 2013, que propunha a tão sonhada escola de tempo integral. Bastaria incluir no meio do projeto aquilo que ao governo interessa. Melhor do que boçalmente falar de partidos, a ideia pôde ser apresentada de forma totalmente desvinculada da intenção de despolitizar os jovens e, ao contrário, aparece como uma tentativa de melhorar a educação no país. Foi só reunir alguns números do sempre pífio desempenho da meninada brasileira no cenário mundial e justificar que a intenção é fazer o que até aqui ninguém fez (e, realmente, afora a tentativa dos CIEPs do Darcy Ribeiro, no Rio, nos anos 80, abortada pelo governador seguinte, nenhum governo fez praticamente nada pela educação).

Ter que fazer mais algumas escolas de tempo integral é um preço pequeno que o governo paga para poder redirecionar o ensino de acordo com suas conveniências. E ainda fica bem na fita. Em 1964 a intenção era a mesma, mas os militares podiam ser explícitos, e as mudanças vieram com a Lei Suplicy de Lacerda (Lei 4.464/1964), aquele da foto lá em cima, que proibia os diretórios de estudantes de discutir política (pois os jovens malvados estavam “usando os diretórios para subverter politicamente os demais estudantes”), e pelos 12 acordos firmados pelo MEC com a United States Agency for International Development (Usaid), assim como com a Lei 5.692/71 (p. 42 e 43), pacote que moldou o ensino brasileiro até a sua completa despolitização, direcionando todos os esforços educacionais para a formação técnica, de quebra melhorando a qualidade da mão-de-obra do país, uma antiga reivindicação de nosso parque industrial. Educação Moral e Cívica e Estudo de Problemas Brasileiros ensinariam o jovem brasileiro a pensar corretamente. Ou seja, não era momento de reivindicar, bastaria ser um bom técnico, um bom trabalhador (de nível médio ou mesmo superior).


Aquela reforma militar do ensino deixou-nos um país em que até profissionais com curso superior, sejam médicos, engenheiros, advogados, roubam o povo, se estão no congresso, ou batem panelas, se estão fora dele. Só aprendemos a nos odiar e a construir presídios.

Mas os que têm milhões lá fora creem ser inteligentes. Nada de violência. Se não estamos mais na ditadura, e não podemos mais tirar um presidente pela força das baionetas, usamos outros meios. Sempre legais. Quem pensa, sabe o que ocorreu, mas o grosso da população, como dizia Nietzsche, é gado, e não tem nem ideia do que está sendo feito. Para o novo governo, isso é suficiente. Não é preciso tirar sociologia, filosofia e artes do currículo, basta torná-las opcionais, como fez a ditadura, e deixar de cobrá-las nos vestibulares. Desaparecem como que por mágica, sem gritaria. De roldão – quem sabe? – história e geografia também perdem parte de sua importância. A educação física entra no bolo para que haja gritaria de todos e seja recolocada: ela legitima a reforma, pois desfaz o argumento de que era coisa direcionada politicamente.

Ninguém foi consultado, a sociedade não foi consultada. Como sempre. Porque não era mesmo para consultar. É democracia “representativa”. Vem por decreto de nossos representantes, e ficam todos, professores e alunos, discutindo o conteúdo da caixinha de primeiros-socorros.

Mais esparadrapo ou mais gaze? O que você acha?

Qual será o próximo passo? Dificultar o acesso dos jovens à internet? É só pensar num bom argumento, como excesso de tráfego, e cobrar bem caro. 

Uma ponte para o passado. Alguém tem mais alguma boa ideia?

Hoje foi dia de eleições no Brasil. E daí?

A democracia representativa nunca nos representou e nunca nos representará. Mas não desanimem, a roda da história é lenta, mas gira. Um dia votaremos tudo diretamente.
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CARTA A CRISTOVAM


Amanhã, dia 29 de Agosto de 2016, será um dia histórico para o país, dia em que pais e mães de todas as posições ideológicas têm obrigação de fazer seus filhos adolescentes assistir ao que vai ser lido no futuro pelos meninos brasileiros que estão nascendo agora. Eles um dia poderão dizer aos filhos: "Isso que eles estão ensinando eu vi acontecer quando era criança! Passou num aparelho que a gente na época chamava de televisão".
 
Para os que não estiverem odiosamente envolvidos, vai ser importante e interessante. Dilma falará pouco para os senadores, pois sabe que não há julgamento, e muito para os livros de história. Ela nunca foi política, e não sabe falar em público, tal como não soube governar. Vai apavorar-se. E embora tenha pegado em armas contra a ditadura na adolescência, mesmo sendo de família rica, embalada no sonho utópico de construir um país mais igualitário... é apenas uma mulher no Brasil. A primeira mulher presidente num país que precisou de uma lei chamada Maria da Penha para tentar diminuir o machismo e a consequente violência contra a mulher.
 
Inês de Castro... D.Maria I, a Louca... Princesa Isabel... Na nossa cultura, nunca fomos gentis com mulheres que levantam a voz. 

A democracia direta vai chegar aos poucos, primeiro nos países europeus, depois aqui nas américas. E essa demora paradoxalmente é boa para o Brasil, pois ainda precisamos avançar muito em educação, para poder votar diretamente com consciência. Ainda hoje, mesmo mulheres votam pouco em mulher.

Reproduzo aqui a carta que ingenuamente enviei hoje ao Senador Cristovam Buarque, em que exponho dois problemas brasileiros muito em evidência: a falta de representatividade de nossos parlamentares e a falta de formação educacional que atinge todos nós.

Atinge o próprio Cristovam Buarque, senador herdeiro das lições de Darcy Ribeiro.

CARTA A CRISTOVAM

Senador Cristovam,

O Senhor me tirou o chão em que piso. 
 
Fui aluno seu da UnB em tempos do reitor-militar José Carlos Azevedo e também em seu tempo. Como o Senhor, trabalhei com finanças, no Brasil e no exterior, e no fim também acabei no magistério. E passei a vida citando seu nome como prova de que o país tinha solução fora da esquerda radical comunista (que nos tira a liberdade) e do capitalismo selvagem (que é o "Berço da desigualdade"). 
 
São cerca de 20 anos de aulas citando Darcy Ribeiro, os Cieps, a criação do Bolsa Escola, e Cristovam... Cristovam... Cristovam... sempre declarando a tristeza de não termos um país educado para escolher parlamentares virtuosos, como eram as premissas de Montesquieu e de Rousseau. 
 
Não gosto da Dilma, que é incompetente, autoritária e arrogante. Não gosto do atual PT nem do PSDB. A corrupção tanto da chamada “privataria tucana” e da tropa de choque da turma do José Dirceu são mais evidentes do que o sol em céu aberto. Do lado do PSDB, Fernando Henrique fechou os olhos à corrupção dessa chamada privataria tucana porque sabia que se deixasse a Polícia Federal dar apoio às investigações do Ministério Público acabaria por comprar briga com todos os setores econômicos e políticos (e que briga, como estamos vendo hoje) e isso tumultuaria o país. Do lado do PT, o mensalão foi pensado inicialmente como forma de fazer um congresso de corruptos votar nas reformas sociais. Mas é impossível não enxergar um PT infestado de oportunistas que diante de tanto dinheiro não acharam nada demais pegar um pouquinho aqui e ali, mesclando projeto de poder com projetos pessoais. Cito só esses dois partidos porque era deles (do PSDB do FHC da Sorbonne, e do PT do Lula e do Suplicy), e apenas deles, que se poderia cobrar honestidade e compromisso com o país. Os demais partidos, fora algumas pequenas exceções nanicas, estão no seu papel esperado de chegar ao poder para fazer negócios. São apenas bandidos financiados por grupos econômicos que sempre se utilizaram da falta de estudo da população para alcançar o Congresso e pilhar o orçamento do país. 
 
Não. Não se trata disso. Há 500 anos o país já vem sendo pilhado.

Trata-se de avançar na boa formação, na EDUCAÇÃO. Sabemos – o Senhor, com seus alunos, e eu com os meus – que nossos inconfidentes não queriam um país melhor para todos, pois eram uma minoria de poderosos que não pretendia pagar impostos... que nossos republicanos não derrubaram a monarquia para construir um país melhor para todos, pois eram uma minoria de poderosos que reagia à libertação dos escravos... que Vargas não foi expurgado para que se conseguisse um país melhor para todos, e sim porque seu nacionalismo contrariou interesses dos grupos que controlavam o país... que Jango não foi deposto para se construir um país melhor para todos, e sim porque estava contrariando os interesses dos mesmos grupos poderosos... 
 
O SENHOR SABE que a atual presidente não está sendo tirada por ser incompetente (que é) nem por ser arrogante e autoritária (que também é). 
O SENHOR SABE que não é por causa da crise econômica (que existe e vai continuar a existir enquanto não mudar o cenário das commodities).
O SENHOR SABE que todos a sua volta no Senado, na Câmara, na direção dos Bancos, na direção dos grandes conglomerados industriais e financeiros, na direção das grandes empresas de mídia, todos, absolutamente todos os que sempre sustentaram a corrupção sistêmica deste país estão apavorados com as prisões que pegaram políticos, grandes empreiteiros e já começam a chegar nos dirigentes do sistema financeiro.
O SENHOR SABE o quanto a permanência do vice Michel Temer é necessária para, em médio prazo, "estancar essa sangria" como disse o próprio Senador Jucá ao Presidente do Senado, Renan Calheiros (o áudio está na internet, é só clicar no São Google). 
  
O que digo a meus alunos, quando estes me perguntam por que o Senador Cristovam, de quem o professor tanto fala, finge não ver o que ocorre? Qual o interesse dele?
 
Não tenho como dizer a eles que a única preocupação que vejo no Senhor, neste momento, é a de conseguir votar a favor do impeachment, agradando ao ibope do momento, e ao mesmo tempo tentando convencer os movimentos sociais de que faz isso de Vontade Boa (Guter Wille, kantianamente falando). 

Sei que o Senhor não faz isso para agradar àqueles simplórios que entortam a boca e batem panelas, mas teme desagradar pessoas de bem que ainda não compreenderam a gravidade da situação. 

Não tenho o que dizer a meus alunos. Não posso explicar o inexplicável a quem ensinei a perceber o que se esconde por trás dos discursos.
 
Resta-me lamentar. E a partir de agora, citá-lo como exemplo daquela passagem do Henrique V, de Shakespeare, quando o Rei, ao descobrir uma conspiração para matá-lo, disse que a partir dali, diante de tal ação perpetrada por pessoas consideradas tão exemplares, ninguém mais ficaria isento de suspeição.
 
Não consigo compreender por que faz isso (as explicações eu já ouvi, mas lembre-se de que tive educação para saber ler). Não compreendo. O Senhor sabe que lá na frente, na História, quando as crises estiverem longe, no passado, e os ódios distantes, todos os jovens irão ler e estudar que houve mais um fatídico Mês de Agosto no Brasil, em que um Congresso avassaladoramente composto por corruptos tirou do poder uma mulher incompetente e arrogante, mas honesta, justamente para poder manter vivo o sistema de corrupção.
 
E o Senhor estará na lista dos que deram aval aos Aloysios Nunes, aos Eduardos Cunhas, aos Renans.

Não entendo.
Mas, pensando bem, entendo.
E é triste.
Perdi um exemplo nas salas de aula. Mas mesmo na minha idade, aprendi mais um pouco na vida.

Ainda assim, pelo seu passado, quero-lhe bem.

Alvaro Maia
um professor brasileiro que também quer um país investindo em educação


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COXINHAS E PETRALHAS - Uma possível releitura de Gounod


Este blog esteve em silêncio durante muitos meses por um só motivo: qualquer post seria apenas uma delenda carthago est em favor de uma revolução educacional que pudesse conduzir o país no futuro a uma democracia direta digital. Repetições viriam para cansar o leitor.
Mas, agora de manhã, no dia da votação pelo início do processo de impeachment da presidente do Brasil, Dilma Rousseff, talvez seja a hora de lembrar a todos mais uma vez a inutilidade do sistema representativo.
No Brasil de hoje, após a retomada da “democracia”, duas ideologias teoricamente – e apenas teoricamente – se digladiam para ditar o projeto social e econômico do país. Os personagens parecem ter sido tirados da ópera Fausto, de Gounod.
 


Ato I
- socialistas no palco

A teoria:

O primeiro personagem é a esquerda, que está no poder. Até hoje somente. E mais alguns dias para que o Senado receba e aceite o processo de impeachment. Isso é claro como o sol – e veja que este post está sendo escrito muitas horas antes da votação na Câmara.
Ela, a esquerda hoje no Brasil, está representada principalmente pelo Partido dos Trabalhadores-PT, que em mais de uma década conseguiu enormes avanços sociais, tirando milhões de brasileiros da fome, incluindo ainda parte destes milhões na sociedade de consumo, e levando milhares de excluídos aos aeroportos e mesmo às universidades, seja por financiamentos, seja por cotas.

A prática:

Para conseguir isso, houve uma mudança de tática para a tomada do poder.
Foi duro quando o líder sindical, o Lula, já muito popular, foi derrotado pelo excelente projeto de marketing, com apoio da mídia, que conduziu Fernando Collor, o “defensor dos descamisados”, a uma vitória maiúscula contra o projeto de reformas sociais.
Ali começou o pacto de Fausto (Lula e parte do PT) com Mefistófeles (o Mercado), tal como na ópera de Gounod (em Gounod há mais romantismo do que no texto de Goethe). Fausto (PT), por amor de Margarida (povo), entendeu que só teria chance de fazer a felicidade de sua amada se tivesse um corpo belo, que a fizesse apaixonar-se. Assim, marqueteiramente, nasceu o Lulinha paz e amor, bem vestido, compreensivo, cumprimentando todos, inclusive os desafetos como o ex-presidente Sarney e o Senador Antônio Carlos Magalhães. Olhe para mim, Margarida (povo), fiquei jovem e bonito, e agora você vai confiar em mim. Não deu resultado imediato, pois ela passava por um relacionamento estável, de confiança, com Siebel (Fernando Henrique), que a tratava como flor. Ouçam a ária faites lui mes aveux (leve a ele minhas confissões), lindíssima, linda até mesmo para os que consideram a ópera uma expressão burguesa que ilustra toda uma época, com o luxo da elite dentro do teatro contrastando com a miséria do lado de fora. Passado o tempo de Siebel (Fernando Henrique), relações em crise, seu partido, o PSDB, não fez o sucessor (além da crise, o pretendente era muito feio) e Fausto (Lula) ganhou o coração de Margarida (o povo).
O segundo pacto com Mefistófeles veio com o chamado mensalão. Inicialmente pensado para fazer os deputados (demônios de Mefistófeles) votarem nos projetos populares, o fluxo enorme de dinheiro acabou seduzindo alguns membros do PT que não consideraram desonestidade pegar um pouquinho aqui e ali, e a coisa acabou transformando-se, mesclando-se o projeto de poder com projetos pessoais. Mefistófeles sabe como ninguém seduzir.
A casa caiu de vez quando uma mulher ingênua, tal como a personagem Martha, na história de Fausto, foi colocada no meio de tudo isso. Dilma deveria ser apenas figurante temporária, uma peça neutra, mas ao se deparar com o sistema promíscuo do poder, dia após dia tendo que aceitar ministros corruptos de partidos de aluguel como forma de governar, a mulher pôs um ministro da justiça que tudo fez para dar independência à Polícia Federal e que esta desse apoio irrestrito ao Ministério Público. Antes dela, a prioridade era o tráfico de drogas: todos os dias viam-se notícias de apreensões, às vezes grandes. Agora não era mais para pegar traficantes, que estes eram apenas consequência, e sim pegar a causa, ou seja, os responsáveis que não deixavam o dinheiro público descer para escolas e hospitais. Era para pegar fosse quem fosse em todo o país.
Começou a caça às bruxas e apareceram muitas bruxas. Começou a ser chamada, com boca torta, de "essa Diiiiilma", e para surpresa dela os casos mais notórios eram, evidentemente, os mais recentes, no próprio partido.
O PT histórico, de combate à corrupção, teve que mudar o discurso:
Antes... VOCÊS SÃO CORRUPTOS
Agora... VOCÊS TAMBÉM SÃO CORRUPTOS
O Brasil inteiro abriu fogo: TIREM ESSA LOUCA DAÍ !!! Primeiro, os deputados e senadores, em sua maioria investigados ou temendo que as investigações chegassem a eles; em seguida, os grandes conglomerados de todos os setores econômicos assustados com o exemplo do que ocorre na construção, com bilionários presos; finalmente, as grandes empresas de mídia, sentindo o pavor de seus anunciantes e tendo pavor ela mesma. Todos há décadas acostumados a pegar o dinheiro lá em cima, antes que esse dinheiro descesse para hospitais e escolas.
Não encontraram motivo real para acusá-la. Os boatos da mulherada das panelas, de que a filha enriqueceu (...está provado "cientificamente", meu marido disse!) não colaram: a mulher e a filha não têm nada ilegal ou que não tivessem antes, e não têm nenhum dinheiro no exterior, nem na Bulgária. 
O jeito era criar, e criaram. O tal jogo contábil, que o povo não entende e que ouve na televisão dizerem que é crime, a chamada pedalada fiscal, foi simplesmente pegar dinheiro de banco estatal para cobrir despesas sociais e repor no ano seguinte. Não podia? Não podia. Mas está longe de ser pegar dinheiro público para pôr no próprio bolso. Mereceria uma advertência, nada mais. O impeachment que se vai fazer é um ato semelhante a expulsar uma menina negra de um colégio de elite sob pretexto de que ela deu cola para um menino pobre que não sabia a matéria. Muitos outros deram cola, diria a mãe, mas nenhum passou tantas questões, retrucaria a diretora. Na verdade, a diretora não poderia dizer o verdadeiro motivo, o de que era um pretexto para tirar a menina negra da escola.
O impeachment já estava decidido, ou seria pelas pedaladas, ou pelas contas de campanha, ou pela obstrução da justiça. Aliás, essa obstrução evidentemente aconteceu. Essa foi a única, e real, desonestidade que a presidente cometeu, provavelmente no desespero, para não perder o apoio do próprio PT. Seria mais digno tirá-la por isso, e não por motivos “arranjados”.

Ato II
- neoliberais no palco
A teoria:

O outro personagem é a direita. Passada a fase de empolgação com a chegada da “democracia”, sobem ao poder homens mais sérios, no trato da res publica, do que Sarney e Collor, que estavam acostumados a ser coronéis em seus redutos e tinham administrado o Brasil como se este fosse extensão de fazendas deles no Maranhão ou em Alagoas. Fernando Henrique, professor da Sorbonne, Paris VII, sociólogo respeitado, com histórico de lutas pela democracia, consertou a economia do país desde que foi ministro nomeado por Itamar Franco. Pôs uma equipe que fez o Plano Real e tirou o país da espiral inflacionária em que estava metido. Na medida do possível, governou buscando o interesse público, comprando brigas com grandes conglomerados para obter ganhos sociais, como foi a batalha dos genéricos, e estendendo programas como o Bolsa-Escola para todo o país.

A prática:

Homem culto, preparado, é claro que o Fernando Henrique presidente percebeu ainda mais de perto do que quando estava no Senado a promiscuidade de um sistema em que bancos e outros setores econômicos financiavam campanhas de deputados de todos os partidos para que esses congressistas votassem por eles e ainda chegassem a conseguir ministérios para favorecer a passagem do dinheiro público para suas empresas. Mas, inteligente, ao contrário de Dilma Rousseff, não quis mexer no vespeiro, com medo da reação (e que reação, como estamos vendo até agora). Assim como Siebel que foi fraco ao lutar por Margarida, FHC preferiu fechar os olhos e aceitar as limitações. Fechou os olhos até para as grandes negociatas, com imensos prejuízos para o país, no que acabou ficando conhecido pelo título de “privatarias tucanas”.
A direita hoje tem a chance de voltar ao poder, aliando-se ao PMDB, partido grande, de aluguel, que não se importa em seguir linhas ideológicas ou econômicas díspares, desde que esteja no poder, ocupando ministérios, cumprindo sua obrigação de mediar recursos para os grandes grupos.

Ato III
- epílogo

Montesquieu, em sua obra máxima, O Espírito das Leis, deixa claro no Livro Quarto, capítulos IV e V, que a tripartição do poder não terá êxito se não houver um parlamento virtuoso e que este é decorrente da educação de seu povo. O brasileiro ingenuamente quer novas eleições para trocar todos os parlamentares. Ora, encha uma panela inteira com grãos de arroz; em seguida ponha nela uma xícara de feijão; mexa bastante; agora, tire um copo de grãos dessa mesma panela: sairá muito mais arroz do que feijão; devolva o copo à panela, mexa e tire de novo: sairá de novo muito mais arroz; e isso se repetirá enquanto tirarmos da mesma amostragem. Montesquieu é de uma obviedade que ainda hoje impressiona. Ao ver gente que tem algum estudo bater panelas é impossível não nos lembrarmos de Montesquieu.
O problema do Brasil não é ir em direção ao neoliberalismo da Merkel ou ao socialismo de Chavez.
O problema é que nossas crianças e nossos adolescentes estão distantes de exemplos de virtude, tanto em casa quanto na escola. Em casa, ouvem os pais falarem de cultura e honestidade, mas os veem depreciar os humildes e furar filas e valorizar coisas supérfluas. Na escola, ouvem os professores falarem de solidariedade e consciência social, e os veem cuidar apenas de suas próprias vidas e desfilar com o novo carro que compraram.

Hoje começam a tirar Dilma Rousseff, a louca.

Paradoxalmente, os corruptos tiram a doida em nome do combate à corrupção. Em nome do combate à corrupção, querem pôr em prática um projeto de autoajuda, para salvarem-se todos das acusações de corrupção. O Vice-Presidente Michel Temer apresenta uma proposta vencedora, ou seja, compõe-se com todos os que estão ameaçados para juntos votarem as reformas “necessárias”:

a) restauração do financiamento privado de campanhas, tranquilizando todos os segmentos que se beneficiam de verbas dos ministérios, ou seja, garantindo a continuidade do sistema.

b) desmantelamento da estrutura que alimenta as investigações da Lava-Jato. Os que consideram isso impossível, é só se informar sobre a tentativa que o congresso fez em janeiro último, alterando o projeto orçamentário da União para 2016, cortando 151 milhões do orçamento da Polícia Federal. A verba foi reposta pelo então ministro Eduardo Cardozo, que transferiu recursos do próprio Ministério da Justiça, exatamente os 151 milhões cortados pela Câmara de Deputados, evitando afetar as operações em andamento. Uma simples pesquisinha de Google pode confirmar esses dados.

c) reforma do judiciário, ampliando o número de membros do Supremo Tribunal Federal, o que permitiria ao novo governo nomear juízes de confiança para “puxar” os processos da Lava-Jato e dar outro rumo às conclusões, salvando-se todos.

É claro que para compor-se com o PSDB, Temer vai dar curso a uma agenda de reformas neoliberais, como desobrigar o governo de cumprir percentual de gasto com educação e saúde, de forma a permitir a privatização de serviços em larga escala e aliviar as contas da União. Virá também a chamada modernização das relações trabalhistas, com perda de direitos que, na visão neoliberal, hoje impedem em grande parte o investimento de empresas na contratação de mão-de-obra. Virão as terceirizações, e as transferências de serviços públicos para a iniciativa privada. Essa será a tônica de um novo governo supostamente mais eficiente, com apoio do congresso, tornando o Brasil mais atrativo aos investimentos estrangeiros para sair da crise.

Estar a favor ou contra essas últimas propostas é fazer uma opção ideológica.
O problema é que no Brasil tanto a proposta liberal quanto a social serão conduzidas por governantes e parlamentares que não representam os interesses da população. Não serão virtuosos fora do papel.

O problema brasileiro é um só: a formação de suas crianças.

Isso só vai ser resolvido com o tempo. Gramsci estava certo quando analisava as formas de chegada ao poder que podem conduzir a resultados permanentes. É de baixo para cima, instruindo os pequenos e os que estão em volta. Isso é trabalho para os poucos brasileiros que dão exemplo de virtude: formar outros brasileiros assim, crianças e adolescentes, para que um ciclo virtuoso comece a se reproduzir até ganhar giro geométrico. Na peça de Gounod, ouçam a ária anges purs, anges radieux (anjos puros, anjos radiosos).
Um desses meninos vai chegar lá em cima com menos demônios como adversários. Aí, sim, poderá enfiar rios de dinheiro na educação, criando escolas de tempo integral que façam como na Noruega. , eles põem os lanches para ser vendidos sem que haja balconista: a criança pega o que quer e deixa o dinheiro numa caixinha, ela mesma contando e pegando o troco.
Assim como as crianças hoje ensinam ecologia a seus pais, em 30 ou 40 anos teremos um parlamento decente.

A democracia direta virá, mas a roda da história é lenta, como o ponteiro pequeno do relógio que marca a hora: ele é lento, mas anda sem que possamos perceber.

Até lá, continuaremos a nos xingar de coxinhas ou petralhas. Inutilmente.

Ah, em tempo: no fim da ópera de Gounod, Margarida se salvou.


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