ELA É SÓ UMA VAGABUNDA



Autorretrato (Artemisia Gentileschi)

chiaroscuro: percebemos que o corpo, o rosto e o vestido estão no visível, e a tela, a paleta de pintura e a personalidade da mulher ficam na sombra. Nesta self do século XVII, é assim que se retrata Artemisia Gentileschi, uma das principais expressões do Barroco italiano, filha artística de Caravaggio.

Com 19 anos, Artemisia foi estuprada por seu professor de desenho, Agostino Tassi, artista de prestígio em Roma. Tassi ignorou o talento e pôs o olho no corpo da mulher. Foi acusado e condenado ao exílio, mas não precisou cumprir a pena por alegar que, na ocasião, a menina já não era virgem.

Um dos quadros mais famosos de Artemisia foi Susana e os anciãos,  que retrata a passagem bíblica em que uma jovem é condenada à morte por cometer adultério. Os acusadores, dois velhos e respeitados juízes, haviam tentado seduzir a moça, motivados pela nudez em que a viram entrar no banho. Recusados, e precavidos, apelaram para a moralidade inventando o adultério.

O caso de Susana teve final feliz. Daniel conseguiu provar a calúnia, separando os acusadores e ouvindo assim versões diferentes. Artemisia não teve a mesma sorte. Agostino Tassi continuou livre e muito  prestigiado pelos homens de bem, recebendo deles generosas encomendas de pintura.

Susana e os anciãos (Artemisia)

Esses dois episódios estão separados por milênios. Mas as condutas que funcionam bem para fazer o mal se repetem, se repetem e se repetem. Justamente porque funcionam. A acusação moral é a mais inteligente forma de se conseguir apoio popular e inverter um jogo que nos seja desfavorável.

MILITARES E CIVIS

O brasileiro médio é obcecado por discurso moralista que venha de cima. Não enxerga problema estrutural. Nossos militares, presos ao passado, continuam a reproduzir a formação que receberam durante a guerra fria, e formam triste aliança com uma boa parte da classe média, uma parcela de mais reduzido entendimento, aquela que construiu sua autoestima -- desde os tempos coloniais -- na ilusão de pertencer à Casa Grande, no orgulho de ser alguém que não se confunde com os libertos ou os remanescentes da escravatura, "os pardos, sem educação e inconvenientes".  Afinal, olhar de cima para baixo os excluídos cria a confortável sensação de ser um incluído.

Gen. Heleno contra o comunismo
Moro contra a corrupção

Há interesses internos e externos que se beneficiam dessa deformação cultural. A ciranda financeira sempre favoreceu uma parcela considerável dos atores econômicos, de rentistas médios a grandes bancos e empresas. E estes não pretendem se arriscar com mudanças estruturais.

Assim, sempre que necessário e possível, ao primeiro sinal de fraqueza da coesão popular, aliam-se os interesses econômicos imediatos daqui e de fora do país, e ambos tocam a sineta de Pavlov para que aqueles militares e brasileiros médios encham o peito e gritem bem alto: abaixo a corrupção, ela é a raiz de todos os males! Garante-se aqui a manutenção da estrutura que a uns é favorável, e lá fora mantém-se o alinhamento político e económico da América para os americanos.

Herança de uma formação escravocrata? Sim. Mas não só. No centro desse tabuleiro sempre esteve o interesse internacional. Criação da Petrobrás, remessa de lucros ao exterior, crescimento dos BRICS, descobertas do Pré-Sal. Há peças mais fundamentais nesse jogo.

Foi o discurso moralista que em 54 derrubou Vargas e interrompeu as mudanças estruturais. Foi o discurso moralista que em 64 levou às ruas a marcha pela família com Deus pela liberdade e interrompeu as mudanças estruturais.  Foi o discurso moralista que exigiu as reformas desestruturais e  entregou e puniu as empresas brasileiras de ponta que incomodavam a concorrência internacional.

Lá fora, são punidos os empresários corruptos, mas nunca as empresas que são marcas da excelência do país. Ninguém é burro de dar o chamado tiro no pé.

O que ganharam os brasileiros com a desestruturação de gigantes como Petrobrás e Odebrecht? Além de ver suas empresas fora do mercado internacional, o país ainda amargou uma queda de US$ 47 bilhões de arrecadação, e perdeu 4,5 milhões de empregos diretos e indiretos.

Belo legado, um verdadeiro estupro. De brinde, uma administração que nos levou a meio milhão de mortos. Até aqui.

No Brasil, como na Roma de Artemisia, você pode estuprar e bater à vontade. Desde que depois aponte a menina como vagabunda.

A moral às vezes é bem imoral.