A BOA VONTADE (Guter Wille)

Ophelia, de John Millais, 1851

Para Immanuel Kant, uma ação é boa ou má em si mesma, pois depende sempre da Guter Wille, ou seja, da intenção com que é praticada. 

No quadro acima temos a obra-prima de John Millais, artista britânico apaixonado pelas personagens de Shakespeare. Numa noite fria de 1850, em Londres, embora já soubesse de cor o texto da peça, Millais saiu do teatro Drury Lane e viu-se a caminhar, pensativo e triste, inconformado com o destino de Ophelia, jovem enlouquecida e morta em decorrência de uma série de ações de seu amado Hamlet. Ela não sabia o que estava acontecendo. O príncipe da Dinamarca  jamais pensou em fazer mal a sua noiva, e mostrou-se rude apenas com a intenção de libertá-la. Sentia que não tinha mais vida para dar a ela. Na visão de Millais, possui Hamlet caráter oposto ao de Iago, que tem fala doce e intenções malévolas na peça Otelo, o Mouro de Veneza.

Em Hamlet: más palavras, boa intenção. Em Iago: boas palavras, má intenção.

E aí está a dificuldade de se entender o momento do nosso país: representantes dos nossos três poderes usam palavras duras para esconder intenções nefastas. Temos o que há de pior entre Hamlet e Iago.

A população está exatamente como a Ophelia do quadro: boiando, inerte, de olhos abertos sem ver nada, braços abertos sem nada alcançar, mãos apenas abertas ao vento. Aberta para receber e ignorada por quem deveria dar. Em volta, flores de toda ordem. As urtigas das dores, as rosas do amor, as margaridinhas da inocência e as violetas que estão sempre presentes na morte.

Ophelia, detalhe
Esses sentimentos todos se mesclam no Brasil de uns anos para cá. A dor dos que observam sem poder de ação, e o amor e a inocência envolvidos cedo pelo espectro da morte, com nossas escolas abandonadas, em sua maioria transformadas em laboratórios de facções (as públicas), ou de projetos egoístas (as particulares), umas e outras dando sua contribuição para que uns brasileiros continuem sentenciando outros à morte: nas calçadas, pelos fora da lei, e na vida,  por aqueles que fazem as leis.

Há narrativas suficientes para absolver ou condenar qualquer um. 

As leis são feitas por representantes que não nos representam. Fazem leis apenas para proteger a si mesmos e a seus grupos, e garantir a impunidade caso sejam descobertos em negócios lesivos à vontade geral. No Brasil, e só no Brasil, o ditado é invertido: PARA OS AMIGOS, A LEI. Aos demais, a interpretação.

Já sabíamos de antemão quem no Supremo Tribunal Federal iria invocar com rigidez a Carta Magna para poder soltar o senador Aécio Neves, afastado de suas funções por envolvimento em crimes diversos. Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Morais são vozes e intenções favoráveis à permanência da atual estrutura de corrupção. A justificativa, a narrativa, é absolutamente secundária.

O Congresso vai sempre absolver os Aécios e impedir denúncias. É questão de sobrevivência,  pois majoritariamente é composto por investigados. É claro que o Supremo sabia o que estava decidindo quando deixou o julgamento a cargo dos próprios parlamentares.

E isso é uma pena, pois do judiciário tem vindo alguma atitude contra essa degradação ética, até doentia, que se implantou no país.

Hoje, em todas as carreiras do judiciário, ingressam jovens com nova postura, pois passam por duros concursos e valorizam a boa remuneração que recebem da sociedade. Os valores são outros, e há cada vez mais quem queira interpretar a lei para desfazer a corrupção sistêmica (embora não sem exageros, precipitações, e até inevitáveis transpirações ideológicas). Mas lá em cima, bem lá em cima, onde as grandes questões se resolvem, o voto de desempate da Ministra Carmen Lúcia, que deu ao Congresso a palavra final sobre seus acusados de crimes, quaisquer que sejam, ainda que comuns, como os de corrupção e formação de quadrilha, mostra que ainda vai levar algum tempo para a boa depuração se concretizar. Conhecido o padrão de decisões dessa nova composição do Supremo,  favorável ao sistema vigente, legislativo e executivo em pouco tempo trazem de volta à pauta os temas rejeitados pela composição anterior, como a tal prisão de condenados em 2a. instância. E alarga-se a porta para que novas decisões possam fazer o país voltar à antiga "normalidade".

A Ophelia daqui vai passar ainda um bom tempo sem ver ou perceber o que está acontecendo. Foi acordada, debateu-se, mas voltou a boiar.

Esse é o destino de toda democracia representativa: ter leis que não representam os representados. E que podem ser usadas contra a vontade geral.

A esperança? Essa nossa Ophelia não está morta, apenas anestesiada. A anestesia impede a razão, mas não o sonho. Novas gerações estão chegando e já já esses meninos e meninas vão despertar para o fato de que não precisamos de representantes para fazer leis.  Iremos votar e decidir tudo diretamente, por internet (ou o equivalente), sem intermediários. 

Ophelia está num rio e a correnteza dos rios sempre leva à liberdade do mar.

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MÉDICO E MONSTRO

Pedro Hispano (1210-1277)

O único papa que encontramos no Paraíso da Divina Comédia, de Dante Alighieri, é Pedro Hispano, o João XXI, que foi também o único pontífice médico e ainda o único português a ser Pontifex Maximus em toda a história da Igreja.

Na Idade Média humanista, os grandes centros de estudo da medicina eram as universidades de Montpellier, Paris, Bolonha e Salerno. Antes de ser papa, Pedro Hispano clinicou e lecionou em todas elas. Mas ensinou lógica também, com viés helenista e bem aristotélico: queria no corpore sano mens sana, ora pois pois. 

E sua obra maior nesse campo foi a Summulae Logicales, um estudo sobre as ideias e as palavras na busca da verdade, sobre o ser e o parecer. Para ele, cientista que era, e que em muitos aspectos se antecipava ao cartesianismo do século XVII, o homem que  simpatiza com uma verdade deixa de pensar, e assim perde a capacidade de ouvir. Qualquer um que não mantenha o necessário distanciamento emocional no momento da observação, abdica da faculdade intelectiva e torna-se um defensor insano das ideias que abraçou. Não escuta nem lê mais. Melhor: escuta e lê o que confirma as próprias ideias, e escuta e lê o contrário apenas para conceber a melhor forma de refutar.

Vemos isso,  por exemplo, e todos os dias, nos fundamentalismos religiosos.

E vemos isso muito bem marcado no Brasil de hoje, também. Um país que, em nenhum governo, com nenhum partido, jamais fez da educação básica a sua prioridade. Um país em que poucos realmente aprenderam a ler e a ouvir.

Observemos: todos os brasileiros estão indignados. E é claro que há fartos motivos, muitos de matriz ideológica e mais ainda de ordem moral, para que uns e outros apontem-se os dedos.

Contudo, embora todos sejam contra TODOS os corruptos, e embora a indignação se mostre contra TODA a corrupção... a intolerância de todos esses mesmos uns e outros é sempre relativa. Estamos cheios de verdades e indignadamente mergulhados nesse fundamentalismo, basta prestar atenção ao que nos mandam pelas redes sociais.

Façamos o exercício: quase todas as postagens indignadas que recebemos ou são de A ou são de B.

A) aquele que é contra todos os corruptos, mas acaba compartilhando apenas o que comprova a corrupção dos petistas.

B) aquele que é contra todos os corruptos, mas acaba compartilhando apenas o que comprova a corrupção dos golpistas.

Pedro Hispano morreu no desabamento de um laboratório que mandara construir ao lado da residência papal, em Viterbo. Foi um apaixonado pela ciência. Como era português, certamente “lá de cima” estaria hoje dizendo: brasileiros, meus filhos, vocês não ouviram nem leram o que ensinei.

João XXI era médico do corpo e da mente. E era um monstro de sabedoria.

Precisamos da democracia direta, e vamos chegar a ela, mas antes será preciso fazer uma enorme revolução educacional.

 


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AS CRIANÇAS DE IZIEU

Klaus Barbi

No próximo dia três de julho, trinta anos serão passados da condenação à pena perpétua de Nikolaus (Klaus) Barbi, o açougueiro de Lyon. O julgamento parou a cidade. Na verdade, parou toda a França, que não se emocionava tanto com tribunais desde o caso Dreyfus, um século antes.
Klaus, comandante da Gestapo na cidade francesa entre 1942 e 1944, transferiu para Auschwitz 44 crianças judias, ao abandonar a cidade prestes ao já iminente desembarque das tropas aliadas.
Cumpriu as ordens, e a lei vigente que considerava válida a solução final, o extermínio de todos os judeus.  A guerra já estava perdida, mas ele foi corajoso e ético com os seus superiores até o fim. Foi fiel a eles e mostrou ser digno da confiança daqueles que o nomearam.
Corajoso. E digno de confiança.


Crianças de Izieu

Nós também ainda somos assim.
No passado, era o grande juiz do Supremo,  Manoel Caetano de Almeida e Albuquerque, a mandar caçar os negros fujões no Brasil Imperial. Estava aplicando a lei e sendo digno de seu cargo.
Hoje são os discípulos do jurista Márcio Thomaz Bastos que deixam pessoas boas na miséria para cobrar mais riqueza para os bancos. Estão amparados na lei e sendo dignos de seus cargos.
As leis não são feitas com a participação dos que são afetados por elas, e sim por pequenas oligarquias que legislam conforme seus próprios interesses. E essas oligarquias fazem todos crer, e cobram isso, que precisamos manter nosso Estado de Direito.


Gilmar Mendes

Não há motivo para espanto diante dos quatro votos a três pela manutenção do mandato de Michel Temer. Esses quatro juízes foram apenas corajosos e fiéis a seus comandantes. E cumpriram a lei, passível de interpretação, considerando a delação da Odebrecht como superveniente ao processo.
Ingênuo quem pensa na independência do judiciário. Ingênuo quem pensa no caráter neutro ou protetor da lei.

Enquanto não for a própria população a votar diretamente as leis, tudo será apenas um espetáculo circense, um show para apupos ou aplausos de uma plateia marcada pela ingenuidade.



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O HÁBITO FAZ O MONGE

A arte e sua mimesis

No romance de Mark Twain, o príncipe e o mendigo trocam de lugar para que um saiba como é viver do outro lado.
Feita a troca, o povo passa a adorar aquele que usa as roupas do príncipe.
Aqui no Brasil a adaptação dos papéis seria imediata, cada um sentiria a pele do outro como se fosse a sua própria. 
Não faltam exemplos.
Um nasceu em berço realmente de ouro, em Belo Horizonte, filho e neto de políticos importantes, e aos treze anos já surfava em Ipanema, onde morava no Rio. Começou a vida adulta ao ser nomeado Secretário de Gabinete Parlamentar, aos dezoito anos, quando seu pai, genro de Tancredo Neves, era Deputado Federal. Daí para frente viveu sempre da carreira política do pai ou de sua própria, ancorado na fama do avô.
O outro brotou na favela Beira-Mar, em Duque de Caxias, no Rio, filho de praticamente ninguém, e aos treze anos iniciou-se no tráfico, surfando em cima dos ônibus, fazendo entrega de papelotes de coaína. Aos dezoito anos, já na vida adulta, ajudado por um amigo, passou a comandar uma “boca de fumo” na Beira-Mar, e viveu sempre da carreira das drogas.
Não sabemos se um dia essas almas se encontraram em alguma esquina do Rio de Janeiro. É até possível, embora talvez eles mesmos não saibam.

Mas são almas rigorosamente iguais. Tiveram apenas percursos diferentes, por suas origens diferentes.
E é muito fácil ver o que faz tantas pessoas votarem no bem nascido para que ele seja o homem escolhido para representá-las e decidir por elas:
A aparência. 
Vivemos numa estrutura de representação em que o marketing político tem a capacidade de convencer mídias e pessoas, e vestir um monstro de tal forma que ele seja visto como homem sério e que zela pelo bem de todos.
Em Mark Twain, também foi difícil o povo descobrir quem era o verdadeiro príncipe quando os dois trocaram de roupa.

É isso a democracia representativa.

Um dia a democracia direta virá, pois só está amadurecendo historicamente.


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A PENITENTE MADALENA


Madeleine pénitente, Georges de La Tour

A intenção dela é a melhor possível: deixar de pecar, rezar para que o pecado a deixe de vez. Mas são muitas as variáveis e, por mais que ela se esforce, jamais vai poder entender que Ele quis mais evitar que homens cheios de ódio cometessem pecados bárbaros do que dar atenção à possível falta que ela cometera. 
Georges de La Tour, pintor francês do século XVII, registra magistralmente essa mulher diante de uma vela que toma o lugar que antes era dela, vaidosa, diante do espelho. Ela está pensativa, entendendo pouco numa penumbra chiaroscuro típica do maneirismo daqueles confusos tempos de intolerância religiosa. Isso vale para a era primitiva de Cristo e para a moderna de De la Tour.
E vale para os nossos dias também, dias de intolerância civil, quase religiosa. Dias em que estão no obscurantismo muitas madalenas, principalmente as mais velhas que viveram num país que não lhes deu muito acesso à escola e até hoje formam suas opiniões a partir do marido, do padre ou do pastor, e da voz grave dos âncoras da televisão. Essas mulheres, a quem foi negado conhecer o exemplo das revoltosas de Atenas. Essas mulheres que ouvem os filhos e netos falarem coisas que trazem da escola, coisas que não repetem o que diz a tevê.
Que mundo confuso, meu Deus.
Mas convenhamos, são muitas as variáveis que atrapalham esse jogo.

A ver uma sucinta ordem dos interesses:
  1. Crise das commodities: os dois candidatos, Dilma e Aécio, convencem melhor o povo de que vão fazer o que já sabem que não é possível, mas cumprem o que lhes mandam os marqueteiros (bem pagos com caixa 2 de campanha), e decidem o segundo turno quase emparelhados.
  2. Lava-Jato: a nova presidente nomeia Cardozo para o Ministério da Justiça, o homem que pegou Celso Pita em São Paulo, e o novo ministro dá força à Polícia Federal, que por sua vez presta irrestrito apoio às investigações do Ministério Público. Membros investigados do próprio PT tentam manobrar para substituí-lo, sem sucesso.
  3. Investigados: o Congresso se  aproveita da crise para tentar desestabilizar o governo e provocar alguma mudança que possa barrar as investigações. Conseguem desestabilizar o governo, mas pouco conseguem quanto às investigações.
  4. Revanche partidária: na presidência do PSDB, Aécio luta para que o partido faça coro pelo impeachment, argumentando internamente que as próximas eleições serão do partido; assim, por um acordo o PMDB fica de cumprir as medidas impopulares e deixar o país pronto para um governo de nova agenda em 2018 (leia o post Dez Passos, de 13 de dezembro de 2016).
  5. Grande Imprensa: corte de gastos com a grande imprensa (redução de 34%) e  promessas de marco regulatório, por um lado, e por outro, a  esperança de uma agenda mais favorável ao empresariado fazem a grande mídia aderir ao pretexto de impeachment.
  6. Bancos: com a nova agenda, os bancos atiçam seus lobbies e exigem urgência nas medidas que os favorecem (veja o post O Juramento dos Horácios, de 16 de fevereiro de 2017).
  7. Brics: a construção do porto em Cuba (inteligente e oportuna a reaproximação americana), o projeto de Banco e moeda alternativos ao dólar, o cabo submarino, e a futura estrada para escoar os grãos brasileiros pelo Pacífico, via Peru,  para garantir o futuro abastecimento chinês precipitam o apoio americano à derrocada de empresas brasileiras de excelência do setor de infraestrutura, como a Petrobrás e a Odebrecht. Com a corrupção sistêmica do país, motivos não faltam. Apoio velado de Obama ao golpe parlamentar.

O restante é mais fácil de entender. Os dois líderes dos maiores partidos, Temer e Aécio, devido a terem sido alcançados de forma contundente pelas delações, além de não conseguirem avançar no combate ao combate à corrupção, perderam de vez a credibilidade para conduzir o Congresso nas medidas que vão contra a vontade da população. Sua permanência poderia trazer gente de todas as cores para as ruas e seria melhor mudar o comando de vez para que tudo possa leopardianamente permanecer como está.
Cadáveres, os dois corpos já não servem mais. Boa oportunidade para a grande mídia simular imparcialidade e mostrar-se implacável com os antigos protegidos.

Mas a pobre Madalena continuará a ver somente fachos de luz e muita sombra. E a intolerância continuará a dominar as discussões sociais. Paris bem vale uma missa? Talvez.

Os capítulos que estamos vendo são finais. As meninas de hoje, as jovens que o corte de gastos quer impedir de estudar o que hoje estudam, estão longe de ser madalenas.

A democracia direta está vindo. Só não enxerga quem vê apenas até onde seu nariz alcança.


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DOM E RAVEL

Lindo... emocionante!
Há pessoas conscientes que não entendem por que mensagens tão belas de amor e fraternidade irritam alguns amigos que aparentemente também são "bons".

Não é simples, mas é possível entender.

Guillaume-Henri Dufour, engenheiro militar, líder e vencedor da guerra civil suíça de 1847, dedicou-se a construir escolas e pontes, e também criou a Cruz Vermelha Internacional. Ele FEZ o que era preciso fazer, com guerra, com engenharia e atitudes coerentes com tudo aquilo que aprendeu da trilogia de Rousseau -- Contrat Social, Discours et Emille -- e ajudou a construir um país digno para todos. A força da educação: na Suíça, as crianças recebem uma arma e aprendem a atirar com 9 anos de idade, e essa mesma Suíça é um dos países mais pacíficos do planeta. Sobre Brasil e Dufour, se interessar, vá a um post anterior: Sem a música, a vida seria um erro

Assim, há cidadãos que entendem muito bem o que se passa no país e no mundo, ou seja, sabem como poucos quais são as regras do jogo que criam a opressão e a injustiça tanto de direita quanto de esquerda. E essas pessoas se sentem, ainda que inconscientemente, agredidas pela hipocrisia voluntária ou involuntária das mensagens de flores, passarinhos, amor e bondade -- bem ao estilo Rubem Alves.

Sim, é inconsciente, mas sentem-se agredidas... porque são mensagens compartilhadas, com bom coração, tanto pelos ingênuos quanto por aqueles que são responsáveis por tudo o que impede que o quadro de violência e opressão seja superado. Que as pessoas aconselhem umas às outras a ser boas e pacíficas, com pena dos pobres e dos desvalidos, é justamente o que interessa a todo governo que impede o acesso da população à capacidade de pensar e decidir, seja negando-lhes escolas de excelência, seja por controle midiático.

É delicioso ver vídeos, imagens, ler textos, respirar fundo, olhar para o céu e sentir-se uma alma bondosa... "ah, se dependesse de mim"... "por que há tanta maldade no mundo?"

Nesse bolo de sensibilidade encontra-se mesclado todo tipo de gente: os bons, os ingênuos, os egoístas, os corruptos. Encontram-se aí os que saem às ruas para reivindicar tudo em nome de seus grupos, mas que jamais sairiam para pedir mais verbas e qualidade para educação. Ou seja, para pedir A ÚNICA MEDIDA que -- sabemos todos -- redirecionaria o país e ironicamente estancaria a necessidade de se mandar mensagens de caridade e solidariedade.

Todo mundo sabe, mas não faz. Ninguém bate panelas pelo ensino. Ninguém ocupa a esplanada dos ministérios exigindo educação de excelência para todos. Os que trocam mensagens solidárias são em grande parte os mesmos que condenam as invasões nas escolas. Os mesmos que, consciente ou inconscientemente, mantêm a população (e a si mesmos) naquilo que Kant chamou de menoridade.

CIEP, Rio de Janeiro
Em 1983, Darcy Ribeiro criou um projeto revolucionário de escola integral no Rio de Janeiro, os CIEPs. Construiu pelas mãos de Oscar Niemeyer 512 unidades com capacidade para mil alunos cada uma, ou seja, tirou mais de meio milhão de crianças de seus lares desestruturados e as pôs em escolas que mais pareciam universidades de primeiro mundo. Com todas as refeições e atendimento médico e odontológico. Aulas das 8h às 17h todos os dias e programas especiais nas férias. Professores à tarde para ensinar a fazer as tarefas da manhã. Isso funcionou de 1983 a 1987, mas a Rede Globo de Televisão, a mesma que conduz o Criança Esperança, fez campanha contra o projeto, proibindo divulgação dos CIEPs e mostrando buracos no asfalto e lixo esquecido em bairros, para dar à população a ideia de que o Rio de Janeiro estava desgovernado. Assim, fez Darcy Ribeiro perder a sucessão estadual para Moreira Franco, o candidato apoiado pela grande mídia. Sim, foi isso mesmo que você leu. Moreira Franco. O mesmo que hoje "luta" pela escola de tempo integral. Ao eleger-se governador, o Angorá, como é chamado no esquema de corrupção da operação Lava Jato, imediatamente desfez o projeto educacional de Darcy, e devolveu todas as escolas ao antigo meio período, desativando tudo o que se referia ao projeto original. 

Moreira Franco e sua família com certeza compartilham mensagens de amor às crianças e aos desvalidos. 


Dom e Ravel, 1971


Você, leitor jovem, nunca ouviu falar de Dom e Ravel. Era a dupla musical popular mais famosa nos chamados anos de chumbo da história brasileira. Apoiada pelo regime militar, a dupla fazia músicas positivas, de amor e de esperança, que ajudaram a hipnotizar e imobilizar a população inteira. Alguns dos sucessos: Só o amor constrói, Eu te amo meu Brasil, Você também é responsável.

Escreva, no youtube: dom ravel so o amor constroi.

Depois de ouvir, pode ser que aprenda a perdoar as pessoas rabugentas que não curtem tanto assim as mensagens de amor e bondade.

Quando os brasileiros estiverem votando diretamente as leis, construindo seu próprio destino, talvez essas mensagens venham a fazer algum sentido. 



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DEZ PASSOS



"É preciso estancar a sangria"
Recordar é viver, mas é preciso acompanhar. Muitos brasileiros já se esqueceram da famosa gravação de Romero Jucá. Talvez seja a hora de recuperar o principal da informação.

Em maio de 2016, veio a público a gravação da conversa entre Romero Jucá e Sérgio Machado (para ouvir ou ler todo o conteúdo, ponham no Google: romero juca gravacao). Tanscrevemos aqui, da Folha de S. Paulo, de 26/5/2016, uma parte da conversa que sintetiza o caso:

Na gravação, o ex-presidente da Transpetro afirma ao então senador do PMDB que, "a solução mais fácil" era colocar Michel Temer no comando da Presidência. Jucá concorda com o interlocutor e ressalta que somente Renan Calheiros, que, segundo ele, "não gosta de Temer", é contra a proposta de afastar Dilma do Palácio do Planalto por meio de um processo de impeachment.
"Só o Renan que está contra essa porra. Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra", diz Jucá ao ex-presidente da Transpetro.
Na sequência, Machado destaca que é preciso "botar o Michel num grande acordo nacional".
"Com o Supremo, com tudo", enfatiza o ministro.
"Com tudo, aí parava tudo", concorda Machado.
"É. Delimitava onde está, pronto", avalia Romero Jucá, sugerindo que quem já está sendo investigado continuaria alvo da Lava Jato, mas quem ainda não faz parte da apuração do esquema de corrupção ficaria blindado.

Agora, quase um ano depois, vejamos, em dez imagens, o andamento do projeto.


Temer no lugar de Dilma
1) Temer no poder: passo fundamental. Aproveitar a crise. Bastou prometer tirar o país da crise econômica e fazer com que todos, povo e imprensa, se convencessem de que esse era o motivo do impeachment.

"Era um desabafo e não um plano"
2) Jucá na articulação: nomeado primeiramente como Ministro do Planejamento, Romero Jucá foi realocado para a função de articulador do Governo, visto que as gravações dos planos de combate à Lava Jato vazaram para a imprensa.

Sessão para anistia ao Caixa Dois
3) Anistia: em sessão noturna da Câmara, os deputados tentaram fazer passar uma lei que anistiaria os crimes de caixa dois, mas recuaram devido às reações da força-tarefa da Lava Jato, que tiveram apoio de parte da imprensa.

Em cima, votaram pela prisão:
Carmen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Teori Zawascki, Luiz Fux, Edson Fachin e Gilmar Mendes
Em baixo, votaram contra a prisão:
Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski, Antonio Toffoli e Rosa Weber 
4) Transitado em julgado: buscaram no Supremo Tribunal Federal conseguir que as prisões de condenados somente fossem autorizadas depois de transitado em julgado, o que faria com que os processos levassem de dez a vinte anos. Mas o Supremo decidiu, por seis votos a cinco, manter as prisões dos condenados em segunda instância. Duro golpe para o projeto.

Velório de Teori Zawascki
5) Morte de Teori: por "sorte" do Governo, morre o ministro Teori Zawascki, um dos que votaram pela manutenção dos condenados em segunda instância. Porta aberta para que o projeto contra a Lava Jato venha a ter maioria no Supremo.

Velhos amigos
6) Rearticulação: Gilmar Mendes, que havia votado pela prisão em segunda instância, reúne-se com Moreira Franco e Michel Temer no Palácio Jaburu logo depois do velório de Teori Zawascki, divulgando à imprensa ter sido apenas um encontro de velhos amigos.

"Fiquei surpreso por ser encontro num barco"
7) Maioria no Supremo: com a entrada de Alexandre de Morais no Supremo, o projeto ganha maioria na Corte e ainda a chance de  pôr no Ministério da Justiça alguém menos preocupado com a imagem pública e que consiga enfim redirecionar as ações da Polícia Federal. Assim que foi indicado, Alexandre de Morais reuniu-se, num barco particular, com senadores investigados.

"Delação premiada é dar voz a bandido"
8) Edison Lobão na CCJ: no Senado, para a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, foi nomeado um senador investigado pela Lava Jato, ferrenho defensor do fim da delação premiada. O instituto da delação é, no seu entender, "um absurdo jurídico, por dar voz a bandidos". Nesta quinta-feira, 16 de fevereiro, a Polícia Federal cumpriu mandado de busca e apreensão em escritórios de Marcio Lobão, filho do senador, investigado, como o pai, por desvios de dinheiro nas obras de Angra III e Belo Monte. O senador, entre outros papéis-chave, tem a missão de conduzir a sabatina dos indicados ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria Geral da República, ou seja, de certa forma escolher os próximos juristas que irão investigar os senadores envolvidos em corrupção.

Celso de Mello e Moreira Franco
9) Foro privilegiado: Temer cria um ministério que havia sido extinto e dá foro privilegiado a Moreira Franco, outro senador investigado na Lava Jato, e articulador do governo para sanar a sangria. Moreira Franco é aquele mesmo que, quando eleito governador do Rio de Janeiro, nos anos 80, desfez o projeto dos CIEPs de Darcy Ribeiro, projeto que revolucionava a educação -- integral -- para mais de meio milhão de crianças das periferias, e as afastava das mãos do tráfico.

E vem aí o novo Carnaval do Congresso
10) Futuras comemorações: mais uma festa dos representantes do povo.


Um dia os jovens não precisarão mais de representantes que decidam por eles.

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NEM MAS NEM MENOS

Bruna Sena e Faissal Ellakkis
O Brasil se renova. Quem vê a fumaça atual não percebe que não há mais tanta lenha.

Todos estão apavorados porque vemos cenas de terror, mais que de violência. Degolam-se os poderosos das classes altas, buscando maneiras de estancar a sangria: tentam mudar as leis, torcer para desastres de avião, nomear quem os possa salvar. Matam-se os poderosos das classes inferiores, degolando-se dentro dos presídios e promovendo o caos do lado de fora.

A garotada que vem aí, a que gosta de estudar, tem outra formação, outra visão de mundo.

Nós, os velhos, somos violentos. E mentimos, dizendo e pensando que não somos. E tentamos fazer de nossos filhos a reprodução de nossa violência. Até conseguimos tornar muitos de nossos jovens violentos também, mas esses serão minoria entre os que estão pouco a pouco chegando ao comando do país, por meio de vestibulares e concursos cada vez mais difíceis. O funil é apertado, e gradativamente começam a entrar nos postos de comando somente aqueles que estudaram muito, e que têm uma visão de sociedade bem diferente da nossa.

O primeiro lugar da Fuvest foi de uma aluna negra, pobre, e que teve a competência de ser estudiosa em meio a todo tipo de violência, da desigualdade ao preconceito. E conseguiu porque encontrou jovens professores com boa formação, uns mesmo mal remunerados no Estado, outros, conscientes estudantes da USP, voluntários, que se interessaram por alunos como ela e de graça lhes deram os cursos preparatórios.

A grande mídia pôs holofotes nos piores exemplos de jovens médicos, deformados, como o caso de Richam Faissal Ellakkis, que deu receita e aconselhou a matar a paciente Marisa Letícia. Mas não deu nenhum destaque à grande maioria de jovens engajados que estão saindo das universidades públicas para construir um país melhor do que esse que receberam dos mais velhos.

Palhamédicos da UFTM
Imagine se esse processo não fosse apenas resultado espontâneo de jovens que acordaram para a necessidade de mudar o país. Imagine se investíssemos realmente, de verdade, em educação, de forma sistêmica.

Ah, Darcy Ribeiro, vox clamantis in deserto: investir em escolas para não ter que investir em presídios. Se o Brasil fizesse, mesmo hoje, um plebiscito sobre dotação orçamentária, sem dúvida o dinheiro público iria prioritariamente para a educação. Todos sabemos disso.

Mas teremos que esperar esses jovens chegarem ao topo.

Mas...

Mas ainda somos o país do mas,
o mas é nossa marca de ódio,
o mas é nosso disfarce para o ódio,
o mas permite que o assassino cruel se sinta bem -- e do bem -- ao apunhalar aquele que odeia,
o mas é a grande mancha que revela a hipocrisia de nossa alma.

Nas demissões:
você é excelente, acrescentou muito ao nosso grupo, mas...
Nos relacionamentos:
gosto de você, que foi importante para mim, mas...
No nono mês o médico diz:
você sabe que sempre fui favorável ao parto normal, mas...
Nas adoções:
não temos nada contra crianças maiores, mas...
Nos negócios:
sou correto, mas...

Enfim, não tenho nada contra:
... os negros, mas
... os gays, mas
... os pobres, mas
... os evangélicos, mas
... os nordestinos, mas

Quando votarem diretamente, os jovens vão pôr o dinheiro sim na educação, e ensinarão suas crianças a dizer de cabeça erguida o que pensam, sem precisar das vergonhosas manchas de personalidade que caracterizam o nosso discurso do mas.

O país está mudando, mas
poucos veem o ponteiro das horas se mexer.


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TRUMP: (SÓ) QUATRO ANOS


Não oito.

Esse é o consolo que têm 62 milhões de eleitores americanos que votaram contra Donald Trump. Os Estados Unidos são uma grande democracia, e seu sistema funciona perfeitamente. Mas está longe de ser o mais democrático.

Qualquer eleitor americano mais bem informado, seja ele um republicano liberal ou até um democrata socialista, sabe que Donald não ficará oito anos na Casa Branca. Sua política econômica e de segurança faz hoje eco nos ouvidos leigos assustados, mas sua prática levará internamente a um aumento gradativo de preços dos bens de consumo, gerando aos poucos nova crise e desemprego, e obviamente alimentando a futura insatisfação popular. O homem quer fazer economia por decreto, como tentaram Sarney no Brasil e Chavez na Venezuela.

Mas nada se pode alegar contra a eleição de Trump. Espionagem russa, recontagem, e outras desculpas servem apenas como choro de perdedor. Quem teria mais a reclamar, se perdesse, é justamente Trump, que teve contra si todo o poder da mídia comprometida com Wall Street. Na legislação americana, o tempo de divulgação de comícios que as televisões dão a um candidato é obrigatoriamente dado ao outro. E a grande mídia buscou negar ao republicano até esse espaço legal das imagens. Hillary aparecia em meio a multidões enquanto em Trump a imagem era fechada sem mostrar público. Isso sem mencionar que em todos os grandes jornais eram escolhidas fotos sempre benevolentes dela e também sempre ridículas dele.  Para os que pensam que a manipulação ocorre apenas no Brasil, vejam o vídeo abaixo, em que Trump grita com os câmeras que não querem mostrar o público de 31 mil pessoas de seu comício (e para mais, ponham “trump turn the camera” no youtube e verão muitos vídeos semelhantes, bem maiores e em diferentes comícios). 


Ou seja, a eleição americana foi absolutamente legítima, dentro das regras do jogo. E é aí que está o desvio democrático. Lá não são os eleitores que decidem a legislação. Eles elegem quem vai fazer as leis e quem vai governar. Como aqui. E seus candidatos cumprem as promessas. Diferente daqui. Ora, tudo o que Trump está fazendo foi prometido em campanha, tal como Obama o fez. Nem Duda Mendonça, do PT, nem Augusto Fonseca, do PSDB, podem ser marqueteiros eleitorais nos Estados Unidos. Lá não há surpresa. O sistema funciona, ninguém é lesado. As manifestações da garotada americana são bem claras: watch out Trump, my generation votes next (abra o olho, Trump, minha geração vota em seguida). Mas terão os americanos que esperar quatro anos para voltar à pauta que conduziu Obama por dois mandatos. 


Funciona melhor do que no Brasil, mas ainda assim é um sistema falho, por não ser direto. Fossem os próprios americanos a decidir as leis e jamais o muro seria construído. Vejam que a muralha será erguida ao longo de 3.141 km que envolvem os estados da Califórnia, Arizona, Novo México e Texas, que deram os seguintes votos aos candidatos democrata e republicano:

Califórnia
Dem: 7.362.490 (61,59%)
Rep: 3.916.209 (32,76%)

Arizona
Dem: 936.250 (45,39%)
Rep: 1.021.154 (49,50%)

Novo México
Dem: 380.724 (48,26%)
Rep: 315.875 (40,04%)

Texas
Dem: 3.867.816 (43,44%)
Rep: 4.681.590 (52,58%)

Somados, foram 12 milhões e meio de votos contrários às ideias de Trump, contra menos de dez milhões favoráveis. Se fosse uma democracia direta, como nos Cantões suíços, talvez somente o Texas decidisse pela construção da barreira. E mesmo essa decisão em si, a do muro, poderia ser questionada pela população pois, além de ser ineficaz por não cobrir os 3.141km, a fronteira texana com o México é toda ela natural, o Rio Grande, que terá sua paisagem deformada, descaracterizada. É provável que optassem por um reforço de policiamento fluvial, solução mais barata, mais ecológica e menos humilhante. O muro, sabemos todos, será um dia derrubado com festa, pirotecnia e recordações. Pena.

Hoje temos condições operativas de decidir tudo diretamente por internet. É claro que as próximas gerações vão exigir isso e vão conseguir. O mundo deles é assim, digital e direto.

Mas parece que vão ter que esperar os velhos morrerem.

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