ORA, BOLHAS!

Cupido com bolha de sabão, 1634
Rembrandt

Bolhas sempre existiram. Nas telas e na vida.

Rembrandt van Rijn foi um artista holandês que pintava seus quadros quase sempre por encomendas. Trabalhou no século XVII, na era de ouro dos Países Baixos (a atual Holanda e parte da Bélgica de hoje). A prosperidade econômica da pequena região refletia-se na cultura, e fez nascer aos poucos uma crescente burguesia, homens poderosos que não tinham título mas tinham dinheiro, e muita vontade de alcançar reconhecimento social. Uma das formas de aparecer bem era encomendar quadros de grandes pintores, imitando os hábitos e valores da nobreza, buscando entrar cada vez mais num círculo fechado, antes inacessível. 

Na tela acima, vemos Cupido com bolha de sabão, simbolizando um contraste entre a ilusão do amor, Cupido, que nos parece puro e cheio de vida enquanto amamos, e sua realidade, que é ser efêmero como uma bolha de sabão, que por mais linda e iridescente que seja, se desfaz em poucos segundos, explodindo sozinha ou ao contato com outra superfície.



Hoje está na moda falar de bolhas. Desde que o ativista americano Eli Pariser, de orientação progressista, publicou o livro The Filter Bubble, em 2011, o termo passou a ser utilizado no cotidiano para significar a prisão intelectual em que a maioria dos homens se encontra neste início de milênio, fruto de uma nova relação entre publicidade e consumo, mediada pela era digital. 

De fato, na internet somos hoje minuciosamente controlados por algoritmos que coletam e organizam os big data, numa espécie de inteligência artificial. Esses programas monitoram nossa localização, guardam por onde navegamos nos sites, as lojas em que entramos, o que consumimos, e até marcam o tempo que gastamos online lendo que assuntos e vendo que vídeos. Todas as nossas pesquisas, visualizações, likes e inscrições alimentam a venda de espaço publicitário direcionado e a monetização dos produtores de conteúdo.

A intenção maior atual  é que as redes sociais e a propaganda possam se antecipar aos desejos e interesses do usuário e oferecer aquilo que ele já quer, em todos os temas, sejam eles do campo comercial, político, musical, cultural ou profissional. 

Se alguém fizer uma pesquisa no Google, por exemplo, utilizando o computador de outra pessoa, vai receber respostas diferentes das que receberia se a pesquisa fosse digitada no seu próprio notebook. Teste você mesmo. Entre no Youtube pelo celular de um amigo: de cara, pelas sugestões de vídeo que ali aparecem, você vai saber o que ele gosta de ver quando está só.

São os filtros, são as chamadas bolhas.

Mas na verdade esses isolamentos em grupos afins sempre foram marca de tensão social, visível às vezes, outras vezes nem tanto. Fosse um romano antigo, ou um francês medieval, todos tinham sua cosmovisão filtrada pela classe social a que pertenciam. Ontem foi, e ainda hoje é, difícil pensar fora da bolha que nos envolve, embora a tal bolhinha pareça sempre ser muito clara e transparente.  

É raro chegar a ter consciência de que o conhecimento vai além das verdades que enxergamos e que nossa vontade aceita. Isso traz insegurança. Se acredito que a Terra é plana, ou que Maomé é o maior profeta, não quero nem ouvir quem diga o contrário. Quero argumentos que reforcem minhas convicções. A última coisa que me interessa é que abalem minhas crenças, que me deixem sem chão. A fragilidade da bolha é uma mentira. A bolha de sabão é sólida. É sólida. É sólida, sim. E pronto!

Mas há uma diferença positiva da era digital em relação ao passado. O homem de hoje não precisa encomendar quadros caros, de pintores famosos, para sair de sua bolha. Basta clicar do outro lado, tão fácil quanto levantar a cabeça. Os algoritmos são estradas muito bem construídas, mas é você quem escolhe as direções e alimenta as máquinas.


Detalhe

No quadro de Rembrandt, Cupido assopra uma bolha de sabão apoiando-a numa concha. As nossas bolhas são também assim. Resistentes. Dificilmente espocam de forma espontânea. Para rompê-las, é preciso muito esforço e alguma vontade de nossa parte.

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E DEPOIS DAS CHAMAS?


Notre Dame de Paris, 15/04/2019

Vimos a Notre Dame pegar fogo em abril, e cinco meses depois nossas florestas começaram a queimar. Lá e aqui a repercussão internacional foi grande.

Há mais de vinte anos, a Disney fez uma excelente adaptação da obra mais popular de Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame. Os direitos comerciais do desenho, desde o incêndio trágico, têm sido doados para a reconstrução da catedral, e mais de US$20 milhões chegaram a Paris. A produção rivaliza com A Bela e a Fera e com o Rei Leão entre as mais populares da história dos desenhos da era pré-digital.

Há uma diferença, porém: a Bela e o Leão realmente são boas histórias, e com conteúdo, mas foram pensadas desde o início para o público infantil, enquanto a Notre Dame de Paris (esse foi o título original do livro publicado em 1831) é um dos romances mais profundos da absurdamente excepcional literatura do século XIX. 

Ali se desenvolvem todos os dramas humanos, tanto no plano coletivo, social, quanto no individual, psicológico. Do monarca Luís XI, egoísta, ensimesmado, até descer ao corcunda Quasímodo, que chegou a amar seu próprio opressor, o arcebispo Frollo, todas as almas são lidas em seus mínimos desvios, tudo no espaço interno da Notre Dame, protagonista individual, e no parvis, que é como denominamos em francês o espaço aberto à frente das catedrais, e que no romance representa um antagonista coletivo.

A etimologia de parvis remete a paraíso, e é ironicamente o campo não elísio dos risos cruéis e sofrimentos que se apresentam todos os dias diante das gárgulas… gárgulas atentas, que parecem perceber a tragédia humana como interessante antessala do inferno.

O brasileiro deveria ler, ou reler, a Notre Dame de Paris. Ou pelo menos rever o desenho. Tudo o que estamos vivendo em 2019 está ilustrado no parvis daquele século XV: a crescente mendicância dos que só têm a rua para dormir; a indiferença dos que passeiam em seus cavalos, que se queixam de ser importunados pelos pedintes e de ter que se desviar dos trapos humanos, os sempre vagabundos que enchem as ruas

Há crescimentos que são imperceptíveis no dia-a-dia, como o de nossos cabelos ou de nossos filhos. Assim também vemos as ruas iguais dia após dia, mas pouco a pouco há mais gente dormindo nas calçadas de bairros em que isso antes não acontecia. Cresce a necessidade de fechar o vidro do carro para não ser incomodado pelos vagabundos fortes que podiam estar trabalhando, em vez de limpar vidro, vender balinha ou fazer malabarismo. Mais e mais craqueiros se escondem ou circulam sem destino… vivemos num país em que os poderosos fizeram a opção de ir aos poucos transformando populações inteiras em zumbis, e as cidades grandes em cenários vivos da série Walking Dead.


Darcy Ribeiro em 1982:
Ou fazemos escolas ou construiremos presídios

As ruas são o retrato de um país quebrado. A solução? Reformas. E como nas reformas ninguém abre mão dos privilégios, ou seja, não podemos cobrar impostos sobre lucros e dividendos (como os Estados Unidos fazem e o resto do mundo também), nem cortar o auxílio-paletó, tiramos (in) justamente de quem não tem. Genial a ideia de acabar mais ainda com o poder aquisitivo de quem consome bens de primeira necessidade. Qualquer estudante de economia do segundo ano percebe que isso vai fechar mais indústrias, pôr mais malabaristas nas ruas e fomentar a violência.


O Corcunda de Notre Dame, 1996
Não temos uma Disney para suavizar a realidade. Ainda bem que vem aí o porte de armas. Quem não puder ir para o exterior, levar seu dinheiro para Miami ou conseguir vaga numa embaixada, vai precisar dessas armas. Num primeiro momento, para se defender das ruas. Mais tarde, quem sabe, para assaltar.

E depois das chamas? As gerações que vêm aí precisam fazer deste país uma democracia direta.


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UMA CARTA NÃO ESCRITA

Caravaggio, Medusa

Por que o espanto? 

Por que muitos me chamam de burro, boçal,  grosseiro, inconveniente? Por que pedem o meu impeachment, a minha interdição? 

Esses amam a democracia, eu jamais a quis. Justamente os que se dizem democratas querem romper com o resultado das urnas. Numa democracia o poder oscila, ora para a direita, ora para a esquerda. Mas não. Para esses, não. O poder não pode oscilar, a menos que seja entre uma esquerda e outra esquerda. 

Desejam o absurdo: que a direita (que venceu) governe com as ideias da esquerda. Quem é o burro? 

Sou um homem coerentíssimo e verdadeiro. Isso assusta as pessoas que estão acostumadas a líderes políticos que não falam o que pensam, dizem só o que acham que é conveniente um estadista dizer.

Acaso eu prometi alguma coisa diferente do que estou fazendo? 

Sempre defendi a ditadura militar, e considerei a tortura um mal necessário em certos contextos. Já disse mais de uma vez que a história da luta armada foi mal contada, com foco nas vítimas de apenas um dos lados. 

Por mim, fecharia o Congresso e acabaria com o Supremo. Nunca falei nada diferente disso.

Criticam e querem denunciar  meu apoio e minhas relações com as milícias. Não entendem nada de Rio de Janeiro. Os milicianos são um Estado paralelo fundamental para o equilíbrio das comunidades de onde o poder público se ausentou.

O que penso hoje dos homossexuais, do protagonismo de mulheres na sociedade, e do vitimismo dos negros? O mesmo que pensava antes. Jamais fui hipócrita. A minha visão da família, da moral,  vem há muito tempo alinhada com a de notáveis pastores que são meus amigos, mais conservadores. Podem rir o quanto quiserem do pé da goiabeira, mas a ministra vai continuar lá. É isso mesmo. Quer mais? Eu e meus filhos admiramos e seguimos, sim, as  ideias políticas e acadêmicas do professor Olavo de Carvalho. E daí? 

Nada disso foi novidade.

Enfim: nunca menti, não enganei ninguém. Foi dessa forma que por décadas consegui eleger a mim e a minha família. E é dessa forma que continuaremos a ser eleitos quando tudo isso acabar.

Se o que digo choca muitos brasileiros, é sinal de que vai empolgar o meu eleitorado fiel. E eu não sou burro de tentar agradar a uma maioria que me despreza e decepcionar aqueles que se identificam comigo.

Doido, tosco, idiota? Se alguém está de bobo nessa história, meu caro, esteja certo: esse cara não sou eu.


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AS (CONTRA) REFORMAS


O nascimento de Venus
Sandro Botticelli
Num quadro renascentista típico, o que primeiro se vê é o tema central. O pintor é objetivo, vai direto ao assunto. Os motivos restantes distribuem-se equilibradamente de um lado a outro da tela. Tudo com claridade absoluta e nitidez de contornos. Serenidade.

A primeira visão que nos chega é a da deusa Venus, que é o tema do quadro, cercada por Zéfiro e Clori de um lado e uma das Horas, de outro. Todos bem visíveis, claros em todas as suas partes. 

Essa visão de mundo construiu-se aos poucos, a partir da fundação das primeiras universidades europeias, ainda no século XIII. Foi um progresso do lado humano da vida, que mais e mais se afastava da religião. 

As consequências foram estudadas e conhecidas: Reforma e Contrarreforma.

Filho direto dessa Contrarreforma, o Barroco trouxe abordagem bem menos objetiva, típica do momento de tensão da época.

A conversão de S.Paulo
Caravaggio
O que primeiro vemos numa pintura barroca é quase sempre um pretexto secundário, de forma que o tema seja percebido depois, num segundo olhar. Há um deslocamento do tema central. Claridade forte em alguns pontos, com  muitas sombras dispersas e partes que não conseguimos ver, uma bela técnica chamada pelos italianos de chiaroscuro. A tela nos remete à tensão, sem nitidez, sem nenhuma objetividade.

Vemos, assim, primeiro um cavalo,  um cavalo enorme, que nos agride os olhos. Depois então reparamos em Paulo,  um santo caído, quase pisoteado em sua conversão. Com luz em meio a sombras que muito sugerem, escondem, temos um chiaroscuro notável, e tudo sem nenhuma nitidez de contornos. Tensão.

Camões e as Tágides
Columbano
A literatura também exemplifica essa visão de mundo. Numa fase maneirista, ou seja, quase barroca, Camões desloca o tema central algumas vezes: aqui ele começa um soneto que parece apenas descrever uma paisagem bucólica...

A formosura destas frescas serras,
E a sombra dos verdes castanheiros
O manso caminhar destes ribeiros
Donde toda tristeza se desterra
(...)

e assim vai nos versos seguintes, para depois deslocar seu tema:

Enfim, tudo o que a rara natureza, 
Com toda a variedade nos oferece, 
Me está, se não te vejo, magoando. 

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece, 
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas maiores alegrias, maior tristeza.

                               (Camões, Rimas)

Falava de amor, não da natureza.

Pois bem. Essa pequena viagem às luzes renascentistas e à reação conservadora que se seguiu pode nos ajudar a compreender melhor os nossos dias.

Vejamos.

Vivemos tempos barrocos. Hoje há também uma certa contrarreforma, inclusive com deslocamento do tema central.

a) O que todos veem:

O Brasil está em discussão.

Guedes, Moro, banqueiros e generais discutem com os congressistas sobre as formas das reformas.

Enquanto isso, o lado bufão do governo ri, solta pum e dá cambalhotas para distrair a grande mídia e as redes sociais. A família presidencial e outros discípulos de Olavo e Steve Bennon parecem ter saído de um túnel do tempo, quase com gritos de "abaixo Fidel". E os brasileiros desse time são canastrões de péssimo gosto, cuja história pode até terminar em simples tragédia miliciana. 

b) O que não se vê:

O jogo econômico é estratégico. Em 28 de janeiro, Trump impôs novas sanções à Venezuela, e os EUA deixaram de ser os maiores compradores do óleo bruto da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana. Prontamente a Índia se apresentou, e a partir de fevereiro passou a comprar 620 mil barris por dia. É agora a maior importadora do petróleo de lá.

Poucos veem esses movimentos econômicos do xadrez jogado no globo. Índia, China e Rússia se puseram ao lado de Maduro, e nesse momento não importa saber se ele é ou não um modelo de estadista.

Putin, Narendra, Rousseff, Xi Jinping e Zuma
O Brasil certamente é uma peça fundamental do jogo dos BRICS.

As guerras, quando surgem, têm explícitas ou veladas motivações de domínio econômico, e a China sabe que não pode tornar-se dependente de grãos norte-americanos.

Nenhum desses quatro países -- Rússia, Índia, China e África do Sul -- vai tomar medidas definitivas contra o B dos BRICS, pois percebem que por aqui o país apenas vive um hiato insano e grotesco.

Eles podem e vão esperar. 

As reformas são reais, e os movimentos circenses do governo podem ser trágicos. Mas o tema central foi deslocado: claro que há ideologias no tabuleiro, mas o jogo é mais econômico do que ideológico. 

Vivemos momentos não de reformas e sim de contrarreformas.

Os atores externos têm sido... a Base de Alcântara, os EUA, a China; a chegada à Venezuela de aviões da Rússia, e agora a ajuda da Índia. 

Não há ainda democracia direta por aqui. Não está ao alcance de nosso povo decidir se queremos continuar alinhados aos BRICS, bloco que tem economia complementar à nossa, e que vem se tornando a maior força econômica mundial (leia o nosso post A penitente Madalena), ou se preferimos estar a serviço dos EUA, nosso maior concorrente comercial. 

É pena que ainda não possamos decidir nós mesmos.

Vivemos, sim, tempos barrocos.


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O RAPTO DE PROSÉRPINA


Bernini, O Rapto de Prosérpina

É um dos mais ricos e simbólicos mitos gregos. Ceres, deusa da agricultura, de onde vem a palavra cereal, tinha uma filha belíssima, Prosérpina. Plutão por ela se apaixonou e a raptou, levando-a como rainha do subsolo. Ceres então vingou-se negando fertilidade à terra até que todos estivessem desesperados de fome.

Esse mito bem ilustra o que vem ocorrendo no Brasil. A deusa Ceres deu ao nosso país tamanha e tão diversificada extensão de terra que cabem aqui, com sobras:

a) a imensa agricultura familiar,  que é responsável por 80% dos alimentos que chegam à nossa mesa;
b) o agronegócio, que responde por significativas exportações;
c) uma invejável indústria farmacêutica,  vocação adormecida na amazônia, que poderia logo nos libertar da dependência farmacológica  em que vivemos;
d) matas paradisíacas de preservação, com imensos parques ecológicos, reservas indígenas reais e áreas de reflorestamento;
e) todo tipo de energia: mineral, hidráulica, solar e eólica, além dos combustíveis que plantamos.

Pero Vaz de Caminha viu que somos uma Prosérpina, uma filha de Ceres, e daí tirou o famoso "em se plantando, tudo dá". 

Mas no Brasil a ignorância e os interesses de alguns impedem que o país vença o atraso, e faz o mito prevalecer sobre a realidade.

Falemos dos nocivos China e MST, por exemplo.

Poucos lembram que nos Estados Unidos a reforma agrária foi aprovada por um congresso majoritariamente republicano em 1862 (Homestead Law), e os mesmos EUA agiram para que o Japão fizesse a sua em 1947, como parte do plano Marshall para reerguer aquele país.

Aqui a grande mídia ajuda a demonizar o MST, caracterizando um movimento de 35 anos como criminosos que invadem fazendas produtivas.

Os assentamentos fundiários e a distribuição mais justa da terra são uma urgência para o desenvolvimento do Brasil, uma necessidade reconhecida até pelos governos militares. Veja-se que elaboraram o Estatuto da Terra (1964), e criaram o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (1970).

Seriam esses militates uns terroristas disfarçados? Tudo é possível.

A prática, no entanto, sempre esbarrou na incompreensão, má fé ou ignorância de uma parte de homens do campo, em geral grandes produtores, que não entendem o todo e usam sua influência para agir com a mesma mentalidade escravocrata que atrasou o país no século XIX. 

Escola de assentamento
O MST é um movimento socialista. Que medo! Medo? Em todo país democrático há movimentos e partidos socialistas, assim como há liberais e de extrema-direita. 

Com 35 anos de história, é claro que a grande mídia vai encontrar um ou outro exemplo de atos irresponsáveis, pessoais ou em grupo, praticados por membros do MST. Mas qualquer um que faça visita a uma ocupação dos sem terra vai se deparar com famílias bem organizadas e assentadas, com seus filhos estudando em escolas dentro dos acampamentos e com enorme produção agrícola livre de agrotóxicos, ecologicanente pensada.

A China é o outro exemplo de intolerância irracional.

Trump e Bolsonaro
Os Estados Unidos são os maiores concorrentes do Brasil no agronegócio. E enquanto nosso governo cria problemas ideológicos com os BRICS, Trump fecha acordos com a China para matar nossas exportações.

Ao demonizar a China, externamente, e o MST, internamente, golpeamos de forma paradoxal tanto a produção agrícola que exportamos quanto a que produzimos para nosso consumo.

Se a deusa Ceres nos deu as melhores terras do mundo para escolher o que fazer, nós estamos escolhendo mal, agindo como Plutão, raptando a filha dela. O mito se realiza, e tantos erros vão certamente provocar a ira dessa deusa Ceres. 

E com ela virá a fome para todos.

Mas vamos dar um crédito a esse governo: talvez o projeto seja fazer do Brasil um futuro grande importador de alimentos.

Sem problemas, pagaremos com o nióbio.

Faltou contar como termina o mito, que tem final feliz. Prosérpina dá início às quatro estações do ano, repartindo seu tempo entre os deuses que mais a amam, Ceres e Plutão. Assim também por aqui um dia uma democracia mais inteligente vai se impor.

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IRON MAIDEN



Câmara de tortura. Embora o nome hoje traga à mente a clássica banda de heavy metal, iron maiden é como os medievais chamavam essa câmara de tortura em formato de mulher.

Uma das músicas mais pedidas pelos fãs do metal chama-se hallowed be thy name (santificado seja o vosso nome), em que um condenado não compreende por que Deus o deixa morrer. Infere-se que o infeliz não tinha consciência de que suas escolhas e ações o levariam à forca.

Iron Maiden, Hallowed be thy name
Há muita gente, principalmente aqui no Brasil, que vê o gênero heavy metal como um barulho sem sentido. É um público habituado a não pensar, que deseja sempre a nota musical esperada, óbvia, e a letra explícita, objetiva. Não percebe a sugestão, o convite a uma outra perspectiva de imagem.

Até que tenhamos uma revolução educacional, tais brasileiros nunca vão compreender as narrativas que estão por trás dessas sugestões. E é por isso que são intolerantes: veem o sol nascer aqui e se pôr ali... como pode alguém enxergar algo diferente?

Exemplo triste disso é o nosso ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, que em seu blog do dia 2 de março amaldiçoou a "política de consenso" que regeu a chancelaria brasileira nos últimos 25 anos. Ele se crê um cavaleiro andante, que vai aonde o perigo está, para libertar a donzela (no caso, povo venezuelano) e lançar o Brasil numa cruzada definitiva contra o chavismo ameaçador.

Diz o nosso chanceler:

"O presidente Bolsonaro e eu estamos, sim, rompendo esse consenso infame. Estamos rompendo com a tolerância irresponsável que ajudou a acobertar os crimes do regime chavista".

Ora, esse "consenso infame" sempre consistiu na tradição de não intervir na política interna de nossos vizinhos. Não interferimos quando a direita no Paraguai tirou Lugo do poder. Se a Venezuela tem problemas, o máximo que podemos oferecer é servirmos de mediadores para buscar um consenso, se a isso formos solicitados.

É fácil ver que Maduro está bem distante de ser um modelo de estadista democrático, respeitador dos direitos humanos.  Mas a perspectiva que nos interessa de perto é a que enxerga Donald Trump como um conservador à moda antiga, oposto tanto aos liberais republicanos quanto aos democratas: um protecionista que vai tentar fazer sempre o melhor negócio para si, ainda que isso custe a vida dos outros e que o planeta se acabe.

Trump se aproveita da atual crise venezuelana para usar Brasil, Colômbia e outros, e assim atingir seus objetivos, talvez sem custos. O petróleo ainda é importante, e ele sabe que é possível utilizar vassalos da geopolítica -- nós, brasileiros e colombianos -- para que sejam sempre preservadas as reservas petrolíferas na zona de influência norte-americana. No fim, a doutrina Monroe é o que representa o slogan de campanha America first.


Embora seja Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo deveria ouvir Iron Maiden para ampliar sua leitura das relações internacionais. Sorte do Brasil que as altas patentes militares, de Mourão a Heleno, têm melhor formação, estão longe de representar o condenado de hallowed be thy name, e conseguem fazer com que Ernesto não empurre o país para uma câmara de tortura. 

Um dia vamos decidir questões como essas diretamente, votando nós mesmos.

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