AS (CONTRA) REFORMAS


O nascimento de Venus
Sandro Botticelli
Num quadro renascentista típico, o que primeiro se vê é o tema central. O pintor é objetivo, vai direto ao assunto. Os motivos restantes distribuem-se equilibradamente de um lado a outro da tela. Tudo com claridade absoluta e nitidez de contornos. Serenidade.

A primeira visão que nos chega é a da deusa Venus, que é o tema do quadro, cercada por Zéfiro e Clori de um lado e uma das Horas, de outro. Todos bem visíveis, claros em todas as suas partes. 

Essa visão de mundo construiu-se aos poucos, a partir da fundação das primeiras universidades europeias, ainda no século XIII. Foi um progresso do lado humano da vida, que mais e mais se afastava da religião. 

As consequências foram estudadas e conhecidas: Reforma e Contrarreforma.

Filho direto dessa Contrarreforma, o Barroco trouxe abordagem bem menos objetiva, típica do momento de tensão da época.

A conversão de S.Paulo
Caravaggio
O que primeiro vemos numa pintura barroca é quase sempre um pretexto secundário, de forma que o tema seja percebido depois, num segundo olhar. Há um deslocamento do tema central. Claridade forte em alguns pontos, com  muitas sombras dispersas e partes que não conseguimos ver, uma bela técnica chamada pelos italianos de chiaroscuro. A tela nos remete à tensão, sem nitidez, sem nenhuma objetividade.

Vemos, assim, primeiro um cavalo,  um cavalo enorme, que nos agride os olhos. Depois então reparamos em Paulo,  um santo caído, quase pisoteado em sua conversão. Com luz em meio a sombras que muito sugerem, escondem, temos um chiaroscuro notável, e tudo sem nenhuma nitidez de contornos. Tensão.

Camões e as Tágides
Columbano
A literatura também exemplifica essa visão de mundo. Numa fase maneirista, ou seja, quase barroca, Camões desloca o tema central algumas vezes: aqui ele começa um soneto que parece apenas descrever uma paisagem bucólica...

A formosura destas frescas serras,
E a sombra dos verdes castanheiros
O manso caminhar destes ribeiros
Donde toda tristeza se desterra
(...)

e assim vai nos versos seguintes, para depois deslocar seu tema:

Enfim, tudo o que a rara natureza, 
Com toda a variedade nos oferece, 
Me está, se não te vejo, magoando. 

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece, 
Sem ti, perpetuamente estou passando
Nas maiores alegrias, maior tristeza.

                               (Camões, Rimas)

Falava de amor, não da natureza.

Pois bem. Essa pequena viagem às luzes renascentistas e à reação conservadora que se seguiu pode nos ajudar a compreender melhor os nossos dias.

Vejamos.

Vivemos tempos barrocos. Hoje há também uma certa contrarreforma, inclusive com deslocamento do tema central.

a) O que todos veem:

O Brasil está em discussão.

Guedes, Moro, banqueiros e generais discutem com os congressistas sobre as formas das reformas.

Enquanto isso, o lado bufão do governo ri, solta pum e dá cambalhotas para distrair a grande mídia e as redes sociais. A família presidencial e outros discípulos de Olavo e Steve Bennon parecem ter saído de um túnel do tempo, quase com gritos de "abaixo Fidel". E os brasileiros desse time são canastrões de péssimo gosto, cuja história pode até terminar em simples tragédia miliciana. 

b) O que não se vê:

O jogo econômico é estratégico. Em 28 de janeiro, Trump impôs novas sanções à Venezuela, e os EUA deixaram de ser os maiores compradores do óleo bruto da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana. Prontamente a Índia se apresentou, e a partir de fevereiro passou a comprar 620 mil barris por dia. É agora a maior importadora do petróleo de lá.

Poucos veem esses movimentos econômicos do xadrez jogado no globo. Índia, China e Rússia se puseram ao lado de Maduro, e nesse momento não importa saber se ele é ou não um modelo de estadista.

Putin, Narendra, Rousseff, Xi Jinping e Zuma
O Brasil certamente é uma peça fundamental do jogo dos BRICS.

As guerras, quando surgem, têm explícitas ou veladas motivações de domínio econômico, e a China sabe que não pode tornar-se dependente de grãos norte-americanos.

Nenhum desses quatro países -- Rússia, Índia, China e África do Sul -- vai tomar medidas definitivas contra o B dos BRICS, pois percebem que por aqui o país apenas vive um hiato insano e grotesco.

Eles podem e vão esperar. 

As reformas são reais, e os movimentos circenses do governo podem ser trágicos. Mas o tema central foi deslocado: claro que há ideologias no tabuleiro, mas o jogo é mais econômico do que ideológico. 

Vivemos momentos não de reformas e sim de contrarreformas.

Os atores externos têm sido... a Base de Alcântara, os EUA, a China; a chegada à Venezuela de aviões da Rússia, e agora a ajuda da Índia. 

Não há ainda democracia direta por aqui. Não está ao alcance de nosso povo decidir se queremos continuar alinhados aos BRICS, bloco que tem economia complementar à nossa, e que vem se tornando a maior força econômica mundial (leia o nosso post A penitente Madalena), ou se preferimos estar a serviço dos EUA, nosso maior concorrente comercial. 

É pena que ainda não possamos decidir nós mesmos.

Vivemos, sim, tempos barrocos.


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