O PLEBISCITO NA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA


Um dos argumentos dos que defendem a democracia representativa é o de que a democracia direta já é hoje exercida por meio dos plebiscitos. Pois bem, nesta quarta-feira, dia 21 de março de 2007, o Senado Federal aprovou projeto de decreto legislativo, do Senador Edson Camata, do PMDB, para convocar a população a um plebiscito sobre seis temas, três sobre o cotidiano dos brasileiros e três sobre questões eleitorais:
  1. legalização do aborto;
  2. maioridade penal;
  3. união civil entre pessoas do mesmo sexo;
  4. fim do voto eleitoral obrigatório;
  5. fim da reeleição dos chefes do poder executivo;
  6. financiamento público de campanhas eleitorais.
Havia inúmeros outros temas, como o fim do serviço militar obrigatório, a legalização do comércio e do uso de drogas, a regionalização do direito penal e a desestatização dos presídios. Eles foram sendo derrubados pouco a pouco. Em cima da hora, inclusive, o Senador Jefferson Peres, do PDT, relator do projeto, aceitou emenda do Senador Crivella, da Igreja Universal, cortando a questão do alistamento militar. Todos esses temas são discussão antiga, o projeto inicial previa que o plebiscito fosse votado em outubro de 2005. É isso mesmo, outubro de 2005. Levamos dois anos para fazer a proposta de plebiscito ser votada no Senado. Um projeto que conclame a população a se manifestar leva anos para ser aprovado, e chega com apenas uma seleção do que deve ser discutido. Ou seja, eles, nossos "representantes" é que decidem o que nós podemos decidir ou não.

Ora, se os deputados e os senadores decidem se deve haver plebiscito ou não, e decidem o que deve ser decidido pelo povo ou não, os deputados e os senadores é que estão decidindo tudo, e não os cidadãos. Nada foi debatido com a sociedade. A grande imprensa, como sempre fez e continuará fazendo, quase não deu a notícia. Quando estivermos às vésperas do plebiscito, com certeza essa imprensa virá em apoio da "democracia", comentando e debatendo aqueles temas que o Congresso, por seu desinteresse, ou pelo desinteresse das forças econômicas que representam, resolveu deixar o próprio povo decidir.

É triste, mas o que nos interessa nunca é noticiado para a população. Continuamos discutindo os atrasos nos aeroportos, como se vivêssemos em céu de Brigadeiro.

UM EXEMPLO DE NOSSA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA


Vale a pena ler este exemplo de como somos representados no Congresso.

Numa quarta-feira, dia 24 de maio de 2006, o Ministro Márcio Thomaz Bastos encaminhou ao Congresso um projeto de lei, como de iniciativa do Presidente da República, para modernizar os mecanismos de recuperação de crédito no Brasil. O projeto é extenso, mas vale perder tempo em lê-lo na sua totalidade para que se possa ter noção do tamanho das preocupações que moveram o até então Ministro da Justiça, que exercia um cargo em prol do povo brasileiro. Praticamente todos os 685 artigos do Código de Processo Civil relativos a processo de execução sofreram proposta de “melhoria”, coincidentemente em favor das instituições financeiras. O projeto está disponível no site do Senado Federal (PLC 51/2006), cujo cabeçalho reproduzo abaixo:

PROJETO DE LEI DA CÂMARA Nº 51, DE 2006
(Nº 4.497/2004, na Casa de origem)
(De iniciativa do Presidente da República)
Altera dispositivos da Lei nº 5.869, de
11 de janeiro de 1973 – Código de Processo
Civil, relativos ao processo de execução e
a outros assuntos.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Esta Lei altera dispositivos da Lei nº 5.869,
de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil,
relativos ao processo de execução e dá outras providências.

Chamo atenção para dois pontos específicos: no Art. 649, § 3o., é proposta a quebra da impenhorabilidade dos salários, e no Art. 650 § Único, a quebra da impenhorabilidade do imóvel que seja o bem único de família. Isso quer dizer que os Bancos estariam livres das amarras históricas que protegem o trabalhador e a família brasileira. Esses instrumentos de proteção ao mais fraco já existem na Europa há mais de um século, é o princípio jurídico do homestead do direito anglo-saxônico.

Pois bem, nossos representantes na Câmara Federal (em setembro) e no Senado Federal (em novembro) aprovaram tal projeto, ou seja, trabalharam diretamente para o interesse dos Bancos. Esses deputados e senadores não levaram em consideração que os juros no Brasil são os mais altos praticados em todo o mundo, e que no caso de inadimplência ganham progressão geométrica. Não levaram em consideração que os Bancos seduzem a população com ofertas de crédito fácil, mandando cartões de crédito até para quem não pede. Não levaram em consideração que o espírito da lei que garantia a impenhorabilidade dos salários e do imóvel único da família tinha justamente o objetivo de proteger a população contra o enriquecimento do agiota à custa da miséria do povo. Não levaram em consideração que a penhora dos salários configuraria a volta à escravatura, visto que, sendo a dívida impagável por conta dos juros que crescem sempre mais rapidamente do que a capacidade de o trabalhador gerar riqueza, parte do salário do devedor seria, até sua morte, diretamente transferida para os Bancos.

A democracia representativa é isso. Os representantes não nos representam.

Leiam o texto da alínea "L" redigido pelo Ministro Márcio Thomaz Bastos, no comentário de encaminhamento do projeto, ao tratar dos aspectos da quebra de impenhorabilidade (os presidentes não têm tempo de ler os projetos inteiros e lêem apenas os comentários de seus assessores) :

l) as regras relativas à penhorabilidade e
impenhorabilidade de bens (atualmente eivadas
de anacronismo evidente) são atualizadas,
máxime no relativo à penhora de dinheiro;

Vejam que o Ministro Thomaz Bastos não usa as palavras bem de família nem salários, omitindo o que poderia denunciar as verdadeiras intenções do projeto.

Na votação do Senado, a revolta de alguns senadores chegou a ser patética, tal a vergonha das propostas. E não só dos eternos senadores comprometidos com as causas populares, pois até reconhecidos representantes da elite chegaram a mostrar indignação. Leia-se trecho do discurso, sobre isso, do ex-presidente (quem diria) José Sarney:

Nenhum de nós aqui pode deixar, nem o Presidente, que prevaleça essa alteração em uma lei que é uma conquista de muitos anos. E pergunto: como isso pôde surgir? Quem se beneficia com isso senão aqueles que penhoram casas, senão aqueles, como dizia o Padre Vieira, peixes grandes que comem os peixes pequenos? Eu, que nunca fiz discursos aqui para condenar ou censurar o Senado, acho que cometemos um erro, e erro maior ainda cometerá o Senhor Presidente da República se não vetar esses dois dispositivos (Diário do Senado Federal de 06 de dezembro de 2006, página 37092).

O projeto foi sancionado pelo Presidente da República no dia 7 de dezembro, mas esses dois aspectos receberam o veto devido, graças a uma comissão de senadores que foi ao Planalto esclarecer o Presidente Lula. Agora volta para o Congresso, mas serão necessários 2/3 para que o veto seja derrubado.

E, pior, uma ironia trágica (pode buscar na memória, caro leitor): NEM JORNAIS, NEM TV, NEM REVISTAS, NEM RÁDIO DERAM NOTÍCIA, ao longo desses seis meses, a respeito de algo que comprometeria diretamente a vida de milhões de brasileiros Discutimos Cicarellis e crise de aeroportos, como se tais assuntos fossem mais importantes para nossos destinos.

Sem democracia direta levará muito tempo para haver democracia neste país.