A BOA VONTADE (Guter Wille)

Ophelia, de John Millais, 1851

Para Immanuel Kant, uma ação é boa ou má em si mesma, pois depende sempre da Guter Wille, ou seja, da intenção com que é praticada. 

No quadro acima temos a obra-prima de John Millais, artista britânico apaixonado pelas personagens de Shakespeare. Numa noite fria de 1850, em Londres, embora já soubesse de cor o texto da peça, Millais saiu do teatro Drury Lane e viu-se a caminhar, pensativo e triste, inconformado com o destino de Ophelia, jovem enlouquecida e morta em decorrência de uma série de ações de seu amado Hamlet. Ela não sabia o que estava acontecendo. O príncipe da Dinamarca  jamais pensou em fazer mal a sua noiva, e mostrou-se rude apenas com a intenção de libertá-la. Sentia que não tinha mais vida para dar a ela. Na visão de Millais, possui Hamlet caráter oposto ao de Iago, que tem fala doce e intenções malévolas na peça Otelo, o Mouro de Veneza.

Em Hamlet: más palavras, boa intenção. Em Iago: boas palavras, má intenção.

E aí está a dificuldade de se entender o momento do nosso país: representantes dos nossos três poderes usam palavras duras para esconder intenções nefastas. Temos o que há de pior entre Hamlet e Iago.

A população está exatamente como a Ophelia do quadro: boiando, inerte, de olhos abertos sem ver nada, braços abertos sem nada alcançar, mãos apenas abertas ao vento. Aberta para receber e ignorada por quem deveria dar. Em volta, flores de toda ordem. As urtigas das dores, as rosas do amor, as margaridinhas da inocência e as violetas que estão sempre presentes na morte.

Ophelia, detalhe
Esses sentimentos todos se mesclam no Brasil de uns anos para cá. A dor dos que observam sem poder de ação, e o amor e a inocência envolvidos cedo pelo espectro da morte, com nossas escolas abandonadas, em sua maioria transformadas em laboratórios de facções (as públicas), ou de projetos egoístas (as particulares), umas e outras dando sua contribuição para que uns brasileiros continuem sentenciando outros à morte: nas calçadas, pelos fora da lei, e na vida,  por aqueles que fazem as leis.

Há narrativas suficientes para absolver ou condenar qualquer um. 

As leis são feitas por representantes que não nos representam. Fazem leis apenas para proteger a si mesmos e a seus grupos, e garantir a impunidade caso sejam descobertos em negócios lesivos à vontade geral. No Brasil, e só no Brasil, o ditado é invertido: PARA OS AMIGOS, A LEI. Aos demais, a interpretação.

Já sabíamos de antemão quem no Supremo Tribunal Federal iria invocar com rigidez a Carta Magna para poder soltar o senador Aécio Neves, afastado de suas funções por envolvimento em crimes diversos. Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Morais são vozes e intenções favoráveis à permanência da atual estrutura de corrupção. A justificativa, a narrativa, é absolutamente secundária.

O Congresso vai sempre absolver os Aécios e impedir denúncias. É questão de sobrevivência,  pois majoritariamente é composto por investigados. É claro que o Supremo sabia o que estava decidindo quando deixou o julgamento a cargo dos próprios parlamentares.

E isso é uma pena, pois do judiciário tem vindo alguma atitude contra essa degradação ética, até doentia, que se implantou no país.

Hoje, em todas as carreiras do judiciário, ingressam jovens com nova postura, pois passam por duros concursos e valorizam a boa remuneração que recebem da sociedade. Os valores são outros, e há cada vez mais quem queira interpretar a lei para desfazer a corrupção sistêmica (embora não sem exageros, precipitações, e até inevitáveis transpirações ideológicas). Mas lá em cima, bem lá em cima, onde as grandes questões se resolvem, o voto de desempate da Ministra Carmen Lúcia, que deu ao Congresso a palavra final sobre seus acusados de crimes, quaisquer que sejam, ainda que comuns, como os de corrupção e formação de quadrilha, mostra que ainda vai levar algum tempo para a boa depuração se concretizar. Conhecido o padrão de decisões dessa nova composição do Supremo,  favorável ao sistema vigente, legislativo e executivo em pouco tempo trazem de volta à pauta os temas rejeitados pela composição anterior, como a tal prisão de condenados em 2a. instância. E alarga-se a porta para que novas decisões possam fazer o país voltar à antiga "normalidade".

A Ophelia daqui vai passar ainda um bom tempo sem ver ou perceber o que está acontecendo. Foi acordada, debateu-se, mas voltou a boiar.

Esse é o destino de toda democracia representativa: ter leis que não representam os representados. E que podem ser usadas contra a vontade geral.

A esperança? Essa nossa Ophelia não está morta, apenas anestesiada. A anestesia impede a razão, mas não o sonho. Novas gerações estão chegando e já já esses meninos e meninas vão despertar para o fato de que não precisamos de representantes para fazer leis.  Iremos votar e decidir tudo diretamente, por internet (ou o equivalente), sem intermediários. 

Ophelia está num rio e a correnteza dos rios sempre leva à liberdade do mar.

Do mesmo autor, disponível em www.amazon.com.br




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