E DEPOIS DAS CHAMAS?


Notre Dame de Paris, 15/04/2019

Vimos a Notre Dame pegar fogo em abril, e cinco meses depois nossas florestas começaram a queimar. Lá e aqui a repercussão internacional foi grande.

Há mais de vinte anos, a Disney fez uma excelente adaptação da obra mais popular de Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame. Os direitos comerciais do desenho, desde o incêndio trágico, têm sido doados para a reconstrução da catedral, e mais de US$20 milhões chegaram a Paris. A produção rivaliza com A Bela e a Fera e com o Rei Leão entre as mais populares da história dos desenhos da era pré-digital.

Há uma diferença, porém: a Bela e o Leão realmente são boas histórias, e com conteúdo, mas foram pensadas desde o início para o público infantil, enquanto a Notre Dame de Paris (esse foi o título original do livro publicado em 1831) é um dos romances mais profundos da absurdamente excepcional literatura do século XIX. 

Ali se desenvolvem todos os dramas humanos, tanto no plano coletivo, social, quanto no individual, psicológico. Do monarca Luís XI, egoísta, ensimesmado, até descer ao corcunda Quasímodo, que chegou a amar seu próprio opressor, o arcebispo Frollo, todas as almas são lidas em seus mínimos desvios, tudo no espaço interno da Notre Dame, protagonista individual, e no parvis, que é como denominamos em francês o espaço aberto à frente das catedrais, e que no romance representa um antagonista coletivo.

A etimologia de parvis remete a paraíso, e é ironicamente o campo não elísio dos risos cruéis e sofrimentos que se apresentam todos os dias diante das gárgulas… gárgulas atentas, que parecem perceber a tragédia humana como interessante antessala do inferno.

O brasileiro deveria ler, ou reler, a Notre Dame de Paris. Ou pelo menos rever o desenho. Tudo o que estamos vivendo em 2019 está ilustrado no parvis daquele século XV: a crescente mendicância dos que só têm a rua para dormir; a indiferença dos que passeiam em seus cavalos, que se queixam de ser importunados pelos pedintes e de ter que se desviar dos trapos humanos, os sempre vagabundos que enchem as ruas

Há crescimentos que são imperceptíveis no dia-a-dia, como o de nossos cabelos ou de nossos filhos. Assim também vemos as ruas iguais dia após dia, mas pouco a pouco há mais gente dormindo nas calçadas de bairros em que isso antes não acontecia. Cresce a necessidade de fechar o vidro do carro para não ser incomodado pelos vagabundos fortes que podiam estar trabalhando, em vez de limpar vidro, vender balinha ou fazer malabarismo. Mais e mais craqueiros se escondem ou circulam sem destino… vivemos num país em que os poderosos fizeram a opção de ir aos poucos transformando populações inteiras em zumbis, e as cidades grandes em cenários vivos da série Walking Dead.


Darcy Ribeiro em 1982:
Ou fazemos escolas ou construiremos presídios

As ruas são o retrato de um país quebrado. A solução? Reformas. E como nas reformas ninguém abre mão dos privilégios, ou seja, não podemos cobrar impostos sobre lucros e dividendos (como os Estados Unidos fazem e o resto do mundo também), nem cortar o auxílio-paletó, tiramos (in) justamente de quem não tem. Genial a ideia de acabar mais ainda com o poder aquisitivo de quem consome bens de primeira necessidade. Qualquer estudante de economia do segundo ano percebe que isso vai fechar mais indústrias, pôr mais malabaristas nas ruas e fomentar a violência.


O Corcunda de Notre Dame, 1996
Não temos uma Disney para suavizar a realidade. Ainda bem que vem aí o porte de armas. Quem não puder ir para o exterior, levar seu dinheiro para Miami ou conseguir vaga numa embaixada, vai precisar dessas armas. Num primeiro momento, para se defender das ruas. Mais tarde, quem sabe, para assaltar.

E depois das chamas? As gerações que vêm aí precisam fazer deste país uma democracia direta.


Do mesmo autor do blog,
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5 comentários:

Luiza disse...

Muito bom!
Parabéns!

Luiza disse...

Parabéns pelo belo texto!

João Michael disse...

Ótimo texto, professor!

Alvaro Maia disse...

obrigado

Unknown disse...

Aluna: Emily de Brito Graeff 2B

Realmente e infelizmente a história se repete, por isso é tão iportante estudarmos tantos clássicos literarios e principalmente a história geral, para aprendermos com os erros de gerações passadas. Entretanto parece que a pequena parcela elitista no poder não compreende os acontecimentos e usufrui da falta de conhecimento da população, também os impedindo de aprender para poder "controla-los" e conte-los. Os mesmos que só sabem reclamar de como as coisas estão, são os que não compreende sua porcentagem de culpa nisso, que não acreditam na juventudo e nem que a educação é o caminho para a ascenção em todos os aspectos.